Um artigo repassado pelo coletivo Vila Vudu, condensando o ensaio “La fabrique de l’ homme endetté, essai sur la condition néolibérale”, de Maurizio Lazzarato, traz mais luzes sobre as trevas do modelo neoliberal implantando em todo o planeta, especificamente na UE, ora atravessada por uma crise sem precedentes.
Abordando particularmente o binômio “Dívida e Austeridade” (o modelo alemão do emprego precário), ele abre com nada menos que uma citação de Marx: “O endividamento do Estado é, bem ao contrário, de interesse direto da fração da burguesia que governa e legisla nos Parlamentos. O déficit do Estado era, precisamente, o objetivo ao qual visavam às especulações e principal base do enriquecimento daquela fração. Ao final de cada ano, um novo déficit . Ao cabo de quatro ou cinco anos, novo empréstimo. Ora, cada novo empréstimo dava à aristocracia nova ocasião para cobrar resgate para ‘salvar’ o Estado, o qual, mantido artificialmente à beira da bancarrota, era forçado a negociar com os banqueiros sob condições as mais desfavoráveis. Cada novo empréstimo era nova ocasião para roubar o público que aplica seus capitais em papéis do Estado…” ( Les luttes de classes en France [jan.-nov./1850).
A sensação de “déja vu” é tão forte que é como se Marx estivesse falando do estado da geopolítica atual.
O autor considera que as saídas da crise estão fora dos caminhos traçados pelo FMI. Essa instituição propõe sempre o mesmo tipo de contrato de ajuste fiscal, que consiste em diminuir o dinheiro entregue às pessoas – salários, aposentadorias, pensões, auxílios públicos, mas também às grandes obras públicas que geram empregos –, para pagar aos credores todo o dinheiro economizado. É absurdo. Depois de anos de crise, não se pode continuar entregando o dinheiro sempre aos mesmos.
Ora, é exatamente o que, hoje, querem impor à Grécia! Diminuir tudo, para entregar aos bancos. O FMI transformou-se numa instituição encarregada de proteger, exclusivamente, os próprios interesses financeiros (conquanto tenha sido criada justamente pelos motivos opostos: socorrer países em crise). Quando se está numa situação desesperada, como a Argentina em 2001, é preciso mudar de rota.
Menos de vinte anos depois da “vitória definitiva contra o comunismo” e quinze após o chamado “fim da história”, o capitalismo está num impasse. Desde 2007, vive de injeções de somas astronômicas de dinheiro público e, apesar disso, gira no vazio. No máximo, reproduz-se a si próprio, destruindo todas as conquistas sociais dos dois últimos séculos. Depois da “crise das dívidas soberanas”, o capitalismo exibe um espetáculo hilariante do próprio funcionamento.
As normas econômicas de “racionalidade” que os “mercados”, as agências de risco e os especialistas impõem aos Estados para sair da crise da dívida pública são as mesmas que levaram à crise da dívida privada (que está na origem da dívida pública).
Os bancos, os fundos de pensão e os investidores institucionais exigem que os Estados ponham em ordem os orçamentos públicos, dado que os bancos ainda têm em carteira milhões de títulos podres, frutos de sua política de substituição de salários por dívidas. Depois de dar nota AAA a títulos que hoje nada valem, as agências de risco trabalham “para, contra todas as evidências, impedir a boa avaliação e as boas medidas econômicas”.
Os especialistas (professores de economia, consultores, banqueiros, servidores do Estado e outros) – nos quais a cegueira sobre os estragos que a autorregulação dos mercados e da livre concorrência só é proporcional ao próprio servilismo intelectual – foram catapultados para postos “técnicos” de governo que lembram irresistivelmente “os comitês de comércio da burguesia”. Trata-se mais de novas “técnicas autoritárias e repressivas de governo”, em ruptura com o “liberalismo” clássico, que de “governos técnicos”.
O prêmio do ridículo máximo cabe à imprensa, a chamada ‘mídia’: a “informação” distribuída por noticiários de televisão e entrevistas (talk shows) que “explica” que a crise é culpa de vocês [telespectador e leitor pagante], que se aposentam cedo demais, que consultam médicos sem necessidade, que trabalham pouco e por pouco tempo e querem trabalhar cada vez menos e por menos tempo que o necessário; vocês não são flexíveis e desgastam-se depressa demais. Vocês, afinal de contas, são culpados por consumir pouco e viver abaixo dos próprios meios.
Paradoxalmente (ou não) a publicidade – diferente dos discursos em que se culpam economistas, especialistas, jornalistas e políticos – diz exatamente o contrário ao público: Você é imaculadamente inocente. Você não tem responsabilidade alguma! Não há mácula, nem vestígio de sentimento de culpa ou de responsabilidade na sua alma pura. Você merece tudo, sem exceção, sem interrupção, tudo de todos os paraísos de nossas mercadorias. Seu dever é consumir, consumir, consumir compulsivamente.
Farejam-se de longe as “ordens”, os imperativos: ‘faça’, ‘compre’, ‘procure’, etc., e injunções dos significantes semióticos da culpa/culpabilização/culpabilidade e das semióticas icônicas e simbólicas da inocência.
Por um lado, a moral ascética do trabalho e da dívida; por outro, a moral hedonista do consumo de massa. E ambas se contradizem abertamente, uma vez que são os dois lados da mesma moeda.
Mais do que sugerir alguma saída da crise, essa agitação assemelha-se mais a um círculo vicioso no qual o capitalismo parece ter-se emparedado. Em entrevista recente, o presidente do Banco Central Europeu recomenda, com cinismo thatcheriano, receitas para reembolsar os credores (as quais, não só causaram a crise, como ainda podem agravá-la): baixar impostos para enriquecer os ricos e reduzir despesas sociais para empobrecer os pobres.
Os políticos nada são além de contadores e office-boys do capital. Sarkozy propôs que as receitas para pagar “os juros da dívida grega sejam depositadas numa conta bloqueada, que garantiria que as dívidas de nossos amigos gregos serão honradas.” Favorável a essa ideia, Angela Merkel acredita que a medida permitirá “ter certeza de que esse dinheiro permanecerá disponível por longo tempo.”
Se há uma constante no capitalismo recente é o estado de guerra ao qual o liberalismo o levou de modo quase automático. A guerra intercapitalista parece hoje menos intensa que a guerra que cada capital nacional combate contra seu ‘inimigo interno’. Sem acordo sobre como dividir o bolo da exploração global, os diferentes capitalismos convergem apenas nas formas de como intensificar a exploração no plano de cada Estado.
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