Diálogos das grandezas do Brasil data de 1618 e teve que esperar quase trezentos anos para que – somente em 1900 – o historiador Capistrano de Abreu confirmasse que Ambrósio Fernandes Brandão é seu autor. Um livro que é mais do que um fantástico documento do período colonial brasileiro, trata-se de uma jóia da literatura brasileira.
Cristão novo e senhor de engenho em Pernambuco e na Paraíba, Brandão contava vinte e cinco anos de Brasil e sessenta e três de idade quando concluiu o livro em 1618. Apesar do título ufanista, o autor era homem prático e tinha um poder de observação assombroso.
Não seria prudente nem tampouco acadêmico (foda-se) aproximá-lo a Auguste de Saint-Hilaire, mas, em se tratando de tamanha riqueza de nuances, da terra em transe virginal e de vertiginosos travellings, poderíamos dizer que o dono de engenho e o cientista-explorador guardam curioso parentesco cinematográfico, apesar dos quase 200 anos que os separam no tempo, o espaço é o mesmo.
Além de os Diálogos não servirem a propósitos utilitários, como o Tratado de Gandavo, por exemplo, que nasceu – como bem lembra José Guilherme Merquior* – a partir de um memorial de justificativas que visava uma concessão de exploração da terra, além disso, o que marca a diferença de Ambrósio Brandão para os demais autores coloniais é que, às vezes, o humor entra despercebidamente no lugar das descrições superlativas cujo modelo mais evidente – nem seria preciso dizer – é a carta de Pero Vaz de Caminha.
A meu ver, Ambrósio Brandão foi o primeiro sacana e tirador de onda da literatura brasileira. Vejam só esse trecho do quinto diálogo, quando ele/Brandônio descreve a Alviano (interlocutor desconfiado), os animais da terra e suas qualidades.
Brandônio:
“(…) curumatã é reputado por savel em Portugal, porque são da própria feição, e têm tantas espinhas como ele; piranha é pescado pouco maior de palmo, mas de tão grande ânimo que excedem em ser carniceiros aos tubarões, dos quais, com haver muitas desta parte, não são tão arriscados como estas piranhas, que devem de ter uma inclinação leonina, e não se acham senão em rios d’água doce: têm sete ordens de dentes, tão agudos e cortadores, que pode mui bem cada um deles fazer orifício de navalha e lanceta, e tanto que estes peixes sentem qualquer pessoa dentro nágua: se enviam a elas, como fera brava, e a parte aonde a ferram levam na boca sem resistência, com deixarem o osso descoberto de carne, e por onde mais frequentam de aferrar é pelos testículos, que logo os cortam, e levam juntamente com a natura, e muitos índios se acham por este respeito faltos de semelhantes membros”.
Alviano:
“Dou-vos minha palavra que não haverá cousa na vida que me faça meter nos rios desta terra; porque ainda que não tenham mais de um palmo d’água imaginarei que já são essas piranhas comigo, e que me desarmam da cousa que mais estimo”.
Talvez Ambrósio Fernandes Brandão tenha sido o primeiro português bronzeado (ia escrever “tropicalizado”) da história do Brasil. Todavia anti-macunaíma e anti-antrófago por excelência, no sentido de que ele, apesar de ser um senhor de engenho, conhece, ama e usufrui o Brasil de dentro para dentro, jamais regurgita e/ou incorpora o país a partir de uma visão que tinha tudo para ser estrangeira e predadora.
Diante de tanta riqueza, qual a necessidade – o autor parece lançar essa pergunta aos nossos iluminados modernistas das primeiras décadas do século passado – qual a necessidade que temos de engolir e reprocessar o alheio?
Mesmo hoje, depois de 400 anos, o “emprendedorismo” (vamos chamar assim…) de Fernandes Brandão é contagiante. Ao desconfiado Alviano, ele não se poupa de explicar a superioridade do nosso clima sobre o africano, condena os corsários franceses que todos os anos vinham roubar “a esta costa do Brasil”; censura o imediatismo e o espírito oportunista de seus conterrâneos portugueses e não se conforma com a negligência dos colonos que depredam a terra com o intuito de enriquecer e voltar para o Reino.
Ambrósio Brandão aproveita-se dos diálogos para descrever com riqueza de detalhes diversas capitanias, desde o Rio Amazonas até São Vicente, e desmente pela experiência a tese de alguns filósofos antigos que consideravam inabitáves algumas regiões de nosso território (algumas regiões continuam áridas e os filósofos e especialmente nossos políticos, depois de 400 anos, continuam antigos e predadores…). E tem mais. Fernandes Brandão discorre com propriedade sobre lavouras de açúçar, e expõe a possibilidade de bons negócios a seu interlocutor incrédulo. Quase convence Alviano que as capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba rendiam à coroa mais que toda a Índia; e chega a provocar espanto ao leitor atual pelo fato de que, mesmo sendo um senhor de engenho, consiga apontar a miséria e a condição subumana de índios e escravos naquele Brasil remoto – idos de 1600.
E tudo isso, com humor e um senso de observação – repito – assombroso que deliciosamente resvala numa gaiatice bronzeada e, se me permitem o exagero, renascentista – tamanho o leque de temas que aborda. No total, são seis os diálogos, o quinto – já disse? – é meu preferido; além da descrição das piranhas comedoras de testículos supracitada, destaco essa deliciosa especulação sobre pérolas em terras brasileiras:
Alviano:
“Acham-se por ventura, nas tais ostras, pérolas ou aljôfares, como se acham nas que se pescam na costa das Índias?”
Brandônio:
“Não creio que sejam ostras, de que trato, dessa qualidade; porque as ostras, de que se tiram as pérolas nas Índias, se pescam no mar alto, e as de cá se tomam pelos rios; posto que em algumas, depois de assadas ao fogo, se acham pérolas, que já vem desbaratadas, mas isto raramente, e eu tenho em casa uma destas que vos darei”
Alviano:
“Folgarei com ela para mostrar no Reino, a poder dizer que no Brasil também se acham pérolas.”
Brandônio:
“Da mesma maneira há muitas amêijoas, e outro marisco a que chamam sapimiaga, e, sobretudo um de qualidade estranha, a que dão nome de sernambim.”
Alviano:
“Que qualidade é a desse marisco?”
Brandônio:
“Diferente da que têm todos os mais, porque se acha nele sangue, na forma que o têm os pescados, sem embargo de estar encerrado na sua concha, cousa de que todo outro semelhante marisco carece, e sobretudo o que mais espanta é que, nas conjunções das luas, lhe acode o menstro, como costuma vir às mulheres”.
Alviano:
“Não ousarei eu contar isso em Portugal”.
Esse é o espírito de Diálogos das grandezas do Brasil. Um livro escrito entre 1590 e 1618 que diz muito do Brasil de hoje. No final dos seis diálogos, Alviano, o desconfiado interlocutor, se converte aos encantos da terra nova. E promete que por toda parte apregoará, “do Brasil e de suas grandezas, os louvores que elas merecem”.
Tarefa ingrata de Alviano. Não seria exagero dizer que Ambrósio Fernandes Brandão profetiza, em Diálogos das grandezas do Brasil, o futuro que não desgrudou do passado, ou a enrascada em que nos metemos sem nunca termos saído do lugar. Mudam as paisagens, os homens continuam os mesmos.
A propósito.
Era quase meio dia e meia na Urca. Subitamente me ocorreu uma sensação de perda que incorporava o azul do céu e os séculos que demorei para chegar naquela boca de praia, como se eu – paulistano branquelo – dividisse a responsabilidade com os exploradores de tantos mares por ter gastado a paisagem que não tinha cabimento nem enseada, nem morro da Urca, nem nada que a justificasse. Um grupo de índios e mendigos se banhava em meio a sacolas de lixo e garrafas pet que iam e vinham ao sabor de ondas oleosas. O Brasil rebentava manso na Praia Vermelha.
Somente agora, depois de ter lido Diálogos das Grandezas do Brasil, consegui entender o que aconteceu comigo – algo que resulta em perda e cansaço, e remói engulhos do lixo trazido à praia junto aos índios e mendigos, mas sobretudo lança uma dúvida atroz sobre meus cornos: não ousarei contar isso em Portugal ou apregoarei do Brasil e de suas grandezas, os louvores que merecem?
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