Me disseram que 25 de julho foi Dia do Escritor.
Mas quem decretou, instaurou, determinou arbitrariamente que no mês de julho, dia 25, seria comemorado ou inaugurado ou lembrado ou midiado ou festejado ou reminded the writer? Hein? Bom, ainda é férias ou recesso ou Flip ou Flap – festas literárias que acontecem recessivamente entre paralelepípedos – puta palavra tropeçante trombadora obstaculizante maldita! O que dizer DISSO, cara? E também disto: escritores não merecem efemérides babacas postiças estúpidas que não efemerizam coisa alguma tampouco nada comemoram além deste nada paralisante duma new ausência de tradições reais que sejam profundamente enraizadas em ressonância com a alma do mundo que, afinal de contas, é a nossa, não?
Aquela que ainda não foi vendida.
Um jornal de Fortaleza andou me perguntando o que acho do Dia do Escritor, e se as dificuldades do escritor hoje são maiores ou menores que ontem, e o que eu faria nesse dia que é meu dia (sic)? Respondi que ia dar um rolê (sabe-se lá o que é isso, desde aquele velhíssimo disco da Gal Costa!) para além duma velha gíria sem sentido (para a qual não tenho palavras), então eu fiquei pensando também como intelectual mais ou menos engajada (porque ainda não me engajei de todo, porque ainda sou covarde e burguesinha e tudo o mais), mas está faltando muito pouco pra me meter nisso até o pescoço e me foder de vez com toda essa conversa vagabunda, não é mesmo?
Numa dessas bienais do livro em que estive recentemente, uma famosa autora de auto-ajuda comentou ao me conhecer: “Então você é dessas escritoras de verdade?”
Qual é a diferença entre escritores de verdade e os outros? Em primeiro lugar, são ficcionistas – criam histórias, narrativas, universos inteiros; em segundo, não importa o assunto, “o que se diz”, mas a forma, a linguagem, “como se diz” – portanto são também criadores de linguagem.
Thomas Mann descreve o intelectual italiano como dotado de eloqüência aliada à plasticidade verbal e espírito pedagógico-iluminista, como seu personagem Settembrini de A Montanha Mágica. Mann parece ter acertado em cheio quanto ao escritor Ítalo Calvino. Pedagogicamente, Calvino categoriza os elementos fundamentais da criação literária: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade (não chegou a escrever sobre o Sexto, a Consistência, pois morreu antes de concluir o livro Seis propostas para o novo milênio). Pena que em seu exemplário só existam autores italianos: Dante, Petrarca, Lucrécio, Ovídio e por aí vai. Os italianos são terrivelmente ciosos da própria língua. Moravia chegou a afirmar que a influência dos escritores americanos no após-guerra se deu na Itália através de Vittorini – foi influência americana ‘vittorinisada’ – embora sabe-se lá quem foi Vittorini.
Já os escritores de língua inglesa, como William Faulkner, Ernest Hemingway e Truman Capote, são mais ecléticos e menos arrogantes. Faulkner cita seus autores nesta ordem: o Antigo Testamento, Cervantes, Flaubert, Balzac, Dostoievski e Tolstoi. Só no final lembra Melville, Marlowe, Donne, Keats e Shelley, os de língua inglesa, cujos equivalentes na italiana, Calvino teria citado em primeiro lugar. Truman Capote nomeia Flaubert, Turguenev, Checov, Jane Austen, Maupassant, Rilke, Proust, Shaw, Willa Cather. Hemingway lembra Flaubert, Mark Twain, Stendhal, Turguenev, Tolstoi, Dostoieviski. Não é interessante os três coincidirem nas escolhas de Flaubert, Dostoieviski, Turguenev e Tolstoi?
Além do fato de prosadores lerem outros prosadores e dos bem grandes, a unanimidade por Flaubert indica a obsessão pelo mot juste, a precisão vocabular, comum à maioria dos escritores. Aliás, segundo Borges, “não há sinônimos em literatura, o substantivo ‘vermelho’, por exemplo, deve ser repetido no texto quantas vezes for preciso, não pode ser substituído por ‘escarlate’ ou ‘rubro’, pois assim procedem os datilógrafos”.Truman Capote diz que um texto deve ser perfeito como uma laranja, que é definitiva, sem nada a acrescentar, sem nada a retirar, como se feito por Deus.
Júlio Cortázar considera que escrever “é dizer o máximo com a maior economia de meios”. Também aponta “a intensidade e a tensão” como essenciais à construção do conto. Tensão e intensidade são referidas por Hemingway em sua “teoria do iceberg” – técnica que consiste em dizer pelo não dito, dizer pelo que deixa implícito: o conhecimento que subjaz (e é imenso) ao texto é o que determina a “tensão narrativa”. Mas avisa: se o escritor omite porque não sabe, surgem “os buracos no raciocínio”, causando o efeito contrário, a inconsistência.
Criar obstáculos no desenrolar da ação é estabelecer limites que, para Osman Lins, estão para a criação literária como a férrea estrutura dos vitrais – quanto mais circunscritos, brilham mais. De acordo com a lógica ou regime da narrativa, o escritor cria leis que ele próprio não transgride. Eis o que está por trás quando E. M. Foster, Huxley e Umberto Eco falam que “na altura da página duzentos e tanto, os personagens assumem o comando do romance”: estes são forçados a agir conforme as premissas do mundo em que vivem, ou seja, o autor se torna refém – no bom sentido – das próprias leis da sua obra.
Daí a obra literária como cosmogonia, segundo Faulkner, que também fala sobre o Movimento, esta categoria esquecida, talvez como uma possível terceira articulação que objetivamente pertence ao cinema, mas que é a medida da “impressão de eternidade” (Edgar Morin fala da “impressão de realidade” no cinema) presente em todo grande livro.
Assim, sem querer, engatei nesse papo de Dia do Escritor e decidi ficar à paisana, ou seja, não falar absolutamente da profissão (que é um saco absoluto), mas inevitavelmente acabei falando da vocação, da cruz, da sina, da destinação, da danação que é ser escritor – desta fidelidade absoluta incondicional gratuita (sobretudo gratuita) a um projeto de vida, porque ser escritor pra valer é algo muito anterior a essa vontade de ser fashion e fofo em todas as áreas metrossexuais, digamos. E quem disse que ser escritor dá tesão? Que escrever é divertido? Que vai te levar a algum lugar que não de cara contra a folha em branco? E é aí que quero ver você, té porque ninguém desce vivo duma cruz.