Maria Elena Azevedo
O governo cedeu e abriu mão de três projetos do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), batizado pelo presidente Lula como “PAC da Segurança Pública”, numa referência ao plano de aceleração do crescimento. A medida provisória (MP 384/07) que cria o Pronasci foi aprovada ontem (8) à noite pela Câmara, após exaustiva discussão.
O relator da MP, deputado Marcelo Melo (PMDB-GO), excluiu os artigos que criavam os três projetos de intervenção social direcionados a jovens em conflito com a lei: Reservista-cidadão, Proteção dos Jovens em Território Vulnerável (Protejo) e Mães da Paz. Pela proposta de Melo, acolhida pelo Plenário, o Executivo deverá enviar ao Congresso Nacional um projeto de lei com urgência constitucional contendo os pontos polêmicos retirados do texto.
“Acho que são programas importantes, mas não foram ainda bem entendidos. Precisam ser mais debatidos, mais discutidos aqui na Câmara dos Deputados e virão na forma de projetos de lei, para que possamos avançar ainda mais e fazer com que eles possam fazer parte do Pronasci”, declarou o relator.
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A MP virou alvo de intensas críticas de movimentos feministas, entidades de direitos humanos e pesquisadores da área. Entre as principais, estão a ausência de controle externo da atividade policial e a falta de incentivo a programas de retaguarda, como os de proteção às vítimas de violência. Outro alvo de questionamentos é o monitoramento do programa, a ser feito pela Fundação Getúlio Vargas, sem qualquer participação da sociedade civil.
Mas o item mais criticado durante o Encontro Nacional de Direitos Humanos, realizado entre 24 e 26 de setembro, foi justamente o projeto Mães da Paz – um dos três excluídos –, que “prevê a capacitação de mulheres para identificar jovens e adolescentes de 15 a 29 anos em situação infracional ou em conflito com a lei, para sua inclusão e participação em programas sociais de promoção da cidadania”.
No meio do caminho
A avaliação geral é de que, comparado ao primeiro Plano Nacional de Segurança, apresentado pelo então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, em 2001, o Pronasci, apesar de conter propostas interessantes, não ataca a fundo a questão da violência, fica no meio de caminho.
O projeto, no objetivo “Modernização do sistema de segurança pública e valorização de seus profissionais e reestruturação do sistema prisional”, oferece melhoria dos salários das polícias, vinculando-os a cursos de qualificação, e uma linha de crédito para compra de unidades habitacionais por PMs, mas não toca na questão da corrupção e violência policial.
Corrupção e violência
O Pronasci parece resumir os problemas dos agentes de segurança à questão salarial e à qualidade da moradia. Não há no programa qualquer reforço ao controle externo das polícias, as ouvidorias, que deveriam ter um representante eleito pela sociedade civil e não pelos governadores, como tem acontecido com freqüência. A justificativa de que os desvios policiais se resumem à situação econômica desvirtua o debate sobre a corrupção, o abuso de força e a violência cometida por esses agentes.
A crítica é rebatida pelo Ministério da Justiça, em nota encaminhada pela assessoria de imprensa. “O programa ataca a corrupção policial por meio da formação, capacitação e melhoria do salário e das condições de habitação da categoria. Para ter acesso ao Bolsa Formação (R$ 180 a R$ 400 que serão pagos para quem recebe até R$ 1,4 mil), o policial terá que participar de cursos executados ou coordenados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp)”, diz a nota (leia a íntegra).
A socióloga Julita Lemgruber, pesquisadora da área de segurança pública da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro, usa dados do Instituto de Segurança Publica (ISP) para ilustrar a gravidade do abuso policial. Em 2006, 1.063 pessoas foram mortas pela polícia carioca, contra 29 policiais assassinados em serviço (em 1999, o número de homicídios cometidos pelas forças policiais no Rio foi de 289, um aumento de mais de 367,28% em sete anos). Outro dado alarmante é o número de pessoas desaparecidas no estado nesse mesmo ano: 4.562. A própria polícia acredita que 70% dessas pessoas estejam mortas.
Orçamento pré-estabelecido
“Quais são as ações do Pronasci para controlar o abuso policial? Praticamente nenhuma. Quase nada do primeiro Plano de Segurança do foi implementado. Embora o Pronasci trate de forma superficial as questões, como o sistema prisional, e deixe de lado outras essenciais, como o controle externo, ele tem como positivo o fato de ter um orçamento pré-estabelecido, metas de redução de homicídios e outras de monitoramento previstos. A grande diferença é a entrada de um ministro que demonstra ter vontade e força política para tratar da área”, ponderou a pesquisadora, durante sua apresentação no Encontro Nacional de Direitos Humanos, na Câmara dos Deputados, em 25 de setembro.
Dados da Ouvidoria de Polícia de São Paulo relativos ao primeiro semestre reforçam a preocupação de Julita Lemgruber. Segundo denúncias feitas ao órgão, 207 pessoas foram executadas pela força policial nesses primeiros meses de 2007, sendo a maioria dos casos (147) relacionada à PM. As notificações de abusos, que vão desde constrangimento ilegal e de autoridade e outros, somaram 274.
Mães da Paz
O ponto mais criticado do Pronasci, o Mães da Paz, foi alvo não só do documento final do Encontro Nacional de Direitos Humanos, como de um ofício enviado ao ministro da Justiça, Tarso Genro, por várias entidades que participaram de uma oficina de estudo sobre o “Pronasci e questões de gênero e raça/etnia”, realizada também no Encontro de Direitos Humanos. As organizações afirmam ainda que o programa tem graves problemas, como não enfrentamento do “racismo e sexismo”.
“… As ações do programa não indicam mudanças estruturais na concepção tradicional do papel das polícias: de ação repressiva dirigida aos pobres e minorias em detrimento da segurança e defesa dos seus direitos.”
“Propomos ações específicas para o combate ao racismo nas instituições de segurança pública e ações voltadas para a juventude negra, as principais vítimas da violência. No Distrito Federal, ‘a taxa de homicídios desse grupo (homem negros jovens – 18 a 24 – com até sete anos de estudo) é de 257,3 homicídios por 100 mil habitantes, quase dez vezes a taxa geral brasileira e três vezes a dos brancos com mesma idade, sexo e escolaridade – 79,3’ (Radar Social: IPEA). Não há no programa nenhuma ação específica para a população negra, cujo índice de homicídios é o dobro da população branca”, afirma o documento.
Sobre o Mães da Paz, as restrições são “em relação à nomenclatura e concepção conservadora que se fundamenta na naturalização do papel da mulher como mãe, cuidadora e responsável pela reeducação dos jovens. E ainda, por desconsiderar a situação de risco em que as mulheres estariam envolvidas, não visando os direitos humanos e a cidadania das mulheres. Além disso, para a capacitação das Mães da Paz tem-se como referência o projeto de promotoras legais populares, sendo que o enfoque e objetivos são diferenciados, utilizando-se equivocadamente da nomenclatura, simplesmente pelo fato de ser uma ação voltada às mulheres, o que demonstra o desconhecimento desta política pública não-estatal”, criticaram as entidades.
De acordo com Rúbia Abs da Cruz, representante da Themis/RS, a entidade foi chamada pelo Ministério da Justiça, antes de o programa ser apresentado, para expor como funcionava a experiência das Promotoras Legais Populares. “Nosso encontro durou cerca de 20 minutos. Em nenhum momento nos foi colocada a idéia do Mães da Paz. Eles se utilizaram de nossas explicações para justificar o projeto sem nos consultar”, critica Rubia da Cruz.
Para as entidades de direitos humanos, havia vários riscos para as mulheres nesse projeto do Pronasci, excluído pelo relator na última hora. “Elas atuam em área de risco, vão receber R$ 190 para identificar jovens e tentar trazê-los para o programa. Não há nenhuma reflexão sobre os riscos que essas mulheres vão correr, seja de serem mortas pelo tráfico por atrapalharem seus planos, ou ainda por serem apontadas por seus vizinhos como delatoras. Enfim, o perigo é claro e o Pronasci não dá nenhuma retaguarda a essas mulheres. Quem irá protegê-las dessas situações?”, questiona Edna Calabrez, do Fórum de Mulheres do Espírito Santo.
Reservista-cidadão
A mesma preocupação se dava com o projeto Reservista-cidadão. Para impedir que o tráfico continue recrutando jovens que saem do serviço militar obrigatório, o Pronasci pretendia transformá-los em lideranças comunitárias, dando a eles atribuição idêntica às das Mães da Paz e uma bolsa de R$ 100,00.
“Atuar como líderes comunitários nas áreas geográficas abrangidas pelo Pronasci. O trabalho desenvolvido pelos reservistas-cidadãos tem como foco a articulação com jovens e adolescentes em situação infracional ou em conflito com a lei, para inclusão e participação em programas de promoção da cidadania.”
O grande problema, nessa concepção, é que o governo parte do princípio de que todos os reservistas cooptados pelo tráfico por ele se enveredam por vontade própria, o que nem sempre corresponde à realidade.
Hoje com 23 anos, J., morador de um morro na zona sul do Rio, relata a sua experiência após tentar, sem sucesso, permanecer como pára-quedista no Exército. “Em 2005, tentei continuar no Exército, mas não passei em uma prova que era pré-requisito. Dei baixa e no morro onde morava fui convidado pelo tráfico para ensinar os caras a montarem e desmontarem armas e testá-las, além de passar conhecimentos sobre táticas, tipo como se camuflarem no meio do mato sem serem vistos, etc. Apesar de o pagamento mensal ser muito bom – eles me ofereceram R$ 15 mil – não quis. Na minha família todo mundo é trabalhador e não ia ser o dinheiro que iria me fazer desviar”, conta o ex-pára-quedista.
“Eles me ofereceram três vezes e eu recusei as três. Depois dessa terceira, meu irmão de 15 anos desapareceu. A última vez que foi visto ele conversava com um adolescente ligado ao tráfico, que queria saber onde eu estava. Meu irmão, que nunca se envolveu com nada errado, deve estar morto. Meus pais me fizeram sair do morro, mudar de estado para que eu também não fosse assassinado. Fiquei fora até 2006 e só pude voltar para casa depois que o chefe do tráfico foi executado e outro grupo invadiu a favela”, relata.
Juventude sob pressão
O caso de J. demonstra a pressão a que são submetidos os moradores, reservistas-cidadãos ou Mães da Paz, e como o Pronasci, ao querer transformá-los em lideranças, não considera o risco de morte em seu planejamento. Já o projeto de Proteção dos Jovens em Território Vulnerável (Protejo) era destinado à inclusão social dos jovens em conflito com a lei e expostos a violência doméstica ou urbana por meio de bolsas e práticas esportiva, cultural e educacional. As bolsas teriam valor mensal de R$ 100.
Várias outras críticas poderiam ser feitas ao Pronasci, mas pode-se dizer que o plano acertou o foco, ao olhar para a juventude, a mais atingida pela violência. O último estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), divulgado no final de 2006, afirma que 16 crianças e adolescentes são assassinados por dia no Brasil. Entre 1990 e 2002, essas mortes aumentaram 80% no país.
De 65 países estudados pela Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) o Brasil é o que reúne a maioria de jovens vitimados por armas de fogo e fica na terceira colocação em número de homicídios, de pessoas entre 15 e 24 anos, num ranking de 84 nações.
Em 2004, o relatório do Mapa da Violência 2006 demonstrou que 15.528 brasileiros, de 15 a 24 anos, morreram em acidentes, homicídios ou suicídios causados por armas de fogo. Outro dado: os jovens com idades entre 18 e 28 anos representam, praticamente, 70% da população prisional brasileira.
Reconhecer a urgência de se trabalhar esse segmento, que reúne um quarto da população brasileira, em várias áreas que não só a de segurança é um mérito do Pronasci. A meta do programa é atingir 425 mil jovens entre 15 e 29 anos, incluindo 63 mil reservistas.
Transparência
O Pronasci também traz como vantagens a transparência nos investimentos, estipulados até 2012. Serão R$ 6,70 bilhões, sendo R$ 483 milhões do orçamento do Ministério da Justiça em 2007 (descontigenciados), R$ 806 milhões/ano, de 2008 a 2011 e R$ 600 milhões/ano para o Bolsa-Formação, de 2008 a 2012.
Com o programa, o governo pretende “beneficiar, direta ou indiretamente, 3,5 milhões de pessoas entre profissionais de segurança pública, jovens e suas famílias e buscar a redução do número de homicídios, dos atuais 29 por 100 mil habitantes para 12 homicídios por 100 mil habitantes, nos próximos quatro anos”.
Fica a promessa do governo de não contingenciar os recursos da Segurança Pública. Resta saber se ela se cumpre ou se o Pronasci será apenas mais um plano, como os dois últimos, que se transformaram em mera teoria de campanha eleitoral.
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