Até que enfim alguém resolve botar o dedo na ferida e constatar o óbvio: que “há uma crise no Ministério da Cultura”. Em artigo para a Carta Maior, Saul Leblon toca em alguns pontos chave, advertindo que há o perigo de simplificar a natureza de um impasse pouco discutido e ainda menos entendido fora do círculo de iniciados, interessados e quejandos. Em qualquer crise, o rebaixamento das causas pulveriza as consequências, gerando uma compreensão superficial do assunto.
O fato é que arte e cultura perderam a relevância social e política, sobretudo a partir dos anos 90, devido precisamente à mercantilização de bens, produtos e produtores de arte e cultura não só no Brasil, mas em todo mundo. Mas aqui, em razão das nossas fragilidades culturais históricas, a coisa se agudiza e a história não só não se transforma em farsa porque a “chanchada” preenche mais adequadamente o conceito de como se dá o processo cultural no país.
Um dos nomes da crise atual no MinC é Ana de Hollanda, titular da pasta criada em 1985, no governo Sarney. Segundo seus críticos, faltaria ao ministério ousadia e convicção para reposicionar o país em sintonia com as novas possibilidades, agendas e desafios da produção cultural, notadamente em relação à política de direitos autorais, além da revisão da “lei do patrocínio”, algo que engessa e atrela a política cultural brasileira aos interesses privados.
O jornalismo afivelado à ditadura dos anos 80 costumava seguir uma receita ilustrativa do papel desdenhoso tradicionalmente reservado à cultura na sociedade brasileira: compunha-se de conservadorismo extremo na área da economia; liberalismo bocó na cobertura política e um vale-tudo na cultura. O menosprezo pelo papel da cultura na vida e no desenvolvimento de um povo não é recente, tampouco exclusividade brasileira e muito menos específico dos períodos ditatoriais. De forma que, como seria inevitável, o descaso persiste na política atual, seja ela qual for.
Degradar tevês educativas é outro traço do nosso, digamos, perfil. Não obstante, aconteceu com a BBC na Inglaterra de Cameron, está acontecendo na Espanha de Rajoy, e na São Paulo tucana, cuja tevê pública vive mais um capítulo dum agônico e prolongado crepúsculo financeiro e conceitual. Pior ainda, no Brasil, no auge do ciclo neoliberal, a relação antagônica entre cultura e conservadorismo foi agravada pela assimilação do MinC ao espírito da época. E o engessamento herdado desse período dificilmente será rompido.
No governo FHC, o ministério da Cultura tucano adotou o lema “cultura é um bom negócio” (bom negócio para quem, cara pálida?). Adaptou o regime local de mecenato para a terceirização da política cultural, sustentada pela renúncia fiscal dos fundos públicos. Se as telecomunicações, as estradas e os minérios estavam sendo privatizados, fatalmente a cultura idem. Mas a questão se problematiza porque se privatizam bens simbólicos, impalpáveis, donde que a instância de julgamento crítico se extingue, dando passagem ao arbítrio autista, perverso, medíocre e burro.
O regime de patrocínio cultural – que combina renúncia pública e dívida privada – foi instituído no governo Collor. E a exemplo de outras práticas ‘desregulatórias’ (que o titular da “República das Alagoas” foi “impedido” de implantar), teve seu auge no governo dos “banqueiros intelectuais” e professores tucanos, que aplicaram à Cultura um persistente arrocho orçamentário. Em média, nos anos 90, coube ao MinC minguados R$ 230 milhões ao ano. O torniquete revelou-se funcional ao jogar compulsoriamente a sobrevivência das artes ao arbítrio das fundações de prestígio e fachada, que passaram a deter a prerrogativa de selecionar o que deve ou não chegar aos olhos, ouvidos, corações e mentes do imaginário nacional.
No governo Lula, o orçamento do Ministério da Cultura foi multiplicado por dez, girando hoje em torno de R$ 2 bi. O salto relativo é indiscutível. Mas o valor absoluto está longe de ser suficiente para abolir a senzala da terceirização que determina a cultura do país. Há nessa assimetria uma demolidora e silenciosa crise da cultura que as erupções atuais pouco abordam. Os oito anos de governo Lula, de qualquer forma, acumularam avanços na área que a fraqueza atual do MinC colocam em risco.
Sob a gestão de Ana de Holanda, as linhas de passagem erguidas entre o mecenato neoliberal e a construção de uma política verdadeiramente democrática de financiamento cultural foram perdendo sustentação progressiva, incluindo-se a mobilização para modificar a Lei Rouanet, que seria alvo de uma restauração conservadora dentro e fora do próprio ministério. Segundo Leblon, a crise é tão profunda que a simples troca do titular da pasta não será suficiente para revertê-la.
Sem dúvida, diante do atual estado da cultura, a meu ver, é totalmente indiferente quem ou o quê ocupe o Ministério. É deixar como está, deixar quieto: a cultura definitivamente relegada à irrelevância.
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