João José Forni*
A Copa do Mundo, a exemplo das Olimpíadas, deveria ser uma festa de congraçamento, até porque países sem projeção internacional, mas com um bom futebol, conseguem chegar a um megaevento e se tornarem conhecidos e assistidos por bilhões de espectadores. Embora figurantes, eles conseguem ter 90 minutos de fama nas arenas da Copa do Mundo.
A Fifa descobriu que alguns países emergentes, com pretensões de se tornar grandes, sem dinheiro, mas com muita vontade de aparecer na mídia internacional, acabam aceitando patrocinar a Copa. Uma grande vitrine para projeção internacional e até para atrair negócios. Por isso, passou a preferir países emergentes, como África do Sul, Brasil, Rússia (1918), Qatar (2022), esta última escolha manchada pela denúncia de um escândalo de dimensões do tamanho do futebol mundial, como revelaram os jornais The Sunday Times e The New York Times e a revista britânica The Economist.
Para os países emergentes, sediar a Copa do Mundo e outros eventos internacionais é uma oportunidade para mostrar a capacidade de grandes investimentos, de organização e segurança, comparável aos das grandes potências internacionais. O Brasil, em particular, está tendo muita dificuldade para deixar esse legado, pelo menos para os brasileiros. Sem falar nos estrangeiros que também precisam se locomover nas grandes cidades, mas fugiram ante as cenas de protestos e vandalismo, globalizadas pelas telas das tevês, e pelos preços exorbitantes de hospedagem e transporte elevados ao padrão Fifa.
Elefantes brancos
O país já gastou mais de R$ 26 bilhões em projetos e obras relacionados à Copa do Mundo, incluindo os estádios construídos ou reformados, investimentos que despertaram a população para uma triste realidade. Se sobra dinheiro para obras monumentais para a Copa, bastante discutíveis quanto à necessidade, por que não existem recursos para resolver a infraestrutura do país, principalmente saneamento, estradas, hospitais, postos de saúde, escolas, delegacias?
O ex-jogador da seleção Ronaldo Nazário chegou a dizer, em 2011, para responder aos críticos, que “não se faz Copa do Mundo com hospital”. Mas com estádios. Ele mesmo, há duas semanas disse: “Eu me sinto envergonhado… a gente não podia estar passando essa imagem para fora”.
PublicidadeDa parte do Brasil, a Copa passou a ser vista não como uma oportunidade, mas como uma ameaça até mesmo às contas públicas, porque a situação fiscal tem piorado, enquanto não parou de jorrar dinheiro para os elefantes-brancos construídos nas cidades-sede. Obras altamente questionáveis do ponto de vista do interesse público. Serviram, possivelmente, para enriquecer um punhado de empreiteiros e construtoras, mais alguns intermediários, sem falar nos dutos, que a pressa e os prazos apertados conseguem criar, para escoar dinheiro para campanhas políticas.
Os fantasmas da Grécia
Ainda bem que a população em geral não conhece a história da Grécia. Endividou-se para realizar uma Olimpíada (2004), construiu monumentos que hoje estão abandonados e sucateados, pegou vultosos empréstimos nos bancos europeus e americanos, sonhando com os lucros de participar de uma Europa globalizada. Literalmente quebrou e não são poucos os que atribuem também aos gastos exorbitantes com as Olimpíadas; além, é claro, da corrupção, má gestão, máquina pública burocrática e inchada. Muito parecido com o Brasil.
Oficialmente a Grécia teria gasto US$ 17 bilhões. Mas extra-oficialmente admitem-se gastos de US$ 30 bilhões. A Grécia amarga uma recessão que acabou com empregos, empresas e até o orgulho nacional.
O complexo de 1950 e o preço da aventura
No Brasil, o “não vai ter Copa”, ou “não haverá uma Copa do Mundo”, tornou-se grito de guerra para os manifestantes. Do dinheiro gasto, pelo menos R$ 8 bilhões foram aplicados nos estádios, alguns em cidades como Brasília, Natal e Cuiabá, sem times de projeção e onde a média de público, por ano, não passa de 10 mil torcedores.
Nem com o dinheiro solto em Brasília, o Brasil foi competente para terminar os estádios no prazo. Os atrasos acabaram elevando o preço e forçando aditivos ou ajustes que, como sempre, resolvem o problema das construtoras, mas não os do país. Cálculos do jornal Folha de S. Paulo, no fim de maio, indicavam que das 167 intervenções anunciadas, 88 (53%) estavam incompletas ou ficarão para depois da Copa.
Não foram poucos os analistas que concluíram ter sido um mau negócio para o Brasil aceitar sediar a Copa. Além de investimentos desnecessários em estádios, ficou refém da Fifa para construir obras não imprescindíveis e ainda se submeter a todos os constrangimentos e imposições da dona do futebol mundial. O Brasil impôs 12 sedes, apenas por questões políticas. A média em outros países é oito cidades-sedes. Resultado: uma festa em que a noiva, a Fifa, fica com todo o lucro (calcula-se US$ 6 bilhões), mas quem paga a conta são os brasileiros.
Se o Brasil tinha algum trauma ainda de 1950, não deveria ser com o dinheiro público que essa dívida histórica deveria ser paga. Lá em 2007, quando o Brasil foi escolhido, o presidente Lula e porta-vozes de plantão, como sempre, alardearam que os gastos seriam da iniciativa privada. Alguém acreditou? Como o brasileiro já está vacinado dessas promessas, ninguém levou a sério a bravata e sabia que, ao fim e ao cabo, quem pagaria a conta, como sempre, seríamos nós todos, de forma direta ou indireta.
Se em 1950, o Brasil começou ganhando e acabou perdendo na final, em 2014 nós começamos perdendo desde o início. Nem a vitória na Copa conseguirá apagar o fiasco que foi a construção das obras e o escândalo que representa para o país e o futebol a construção de um novo estádio em São Paulo, onde já havia um outro praticamente pronto (Morumbi). Poderia ser reformado com pelo menos 50% dos custos de um novo. Fora as obras urbanas, desapropriações, instalações temporárias e outras guirlandas.
E por que foi construído? Apenas por capricho do presidente Lula e do presidente do Corinthians, que se uniram para usar o dinheiro público e construir um estádio privado. Até agora, apenas o contribuinte de S. Paulo sabe que grande parte do dinheiro veio da isenção de impostos, ou seja, dinheiro que deixará de ser aplicado nas necessidades mais básicas dos paulistas. Complementaram a verba financiamentos de bancos oficiais, como BNDES e Caixa. Um dia a história pregressa do Itaquerão será contada.
Talvez a vitória no Maracanã, agora, apenas sirva para nos tirar o complexo de perdedor que aquele 1950 deixou numa geração que hoje, pela idade, mal consegue acompanhar os jogos e está pouco preocupada com resultados. Até porque aquele futebol de 50 não existe mais. Hoje, o que existe é um negócio cheio de cifrões, chamado futebol, envolvendo muito dinheiro, contratos milionários com patrocinadores e a mídia, muito marketing, tudo comandado pela Fifa, que não é fiscalizada e fica com a parte do leão.
Nacionalismo e uso político
O governo até agora apostava em faturar politicamente com a Copa. Mas os investimentos, mesmo em obras de infraestrutura, não são percebidos pela população. Do ponto de vista da comunicação, um fracasso. Porque os protestos aglutinaram, hoje, esse sentimento geral de repúdio às grandes obras, enquanto prioridades são postas de lado.
Só com segurança foram gastos R$ 2 bilhões. Enquanto a população do Nordeste sofre desde o ano passado uma terrível seca e estão atrasadas as obras de transposição do Rio São Francisco (projeto mirabolante, altamente questionado), enquanto a do Norte amargou a maior enchente dos últimos 50 anos e o trânsito continua caótico nas grandes cidades, por falta de investimentos em mobilidade urbana, não faltou dinheiro para os estádios e demais obras de infraestrutura nas proximidades das arenas.
Perguntem ao sertanejo nordestino, que bebeu água contaminada dos caminhões pipa, que não tem mais água para o rebanho, nem para o próprio consumo, o que ele acha desses estádios? Perguntem para os moradores, no Rio de Janeiro, desalojados para obras urbanas da Copa e das Olimpíadas, com indenizações abaixo do valor de mercado dos imóveis, como alegam, o que acham dessa festa com o dinheiro público?
O grau de rejeição às obras da Copa levou a Fifa a modificar uma cerimônia tradicional da abertura do evento. Consta que não haverá discursos, como sempre aconteceu em outros países, porque o governo tem medo de uma vaia na presidente Dilma, com repercussão internacional, assistida por bilhões de pessoas. Seria um vexame total.
Então, se o fracasso começou nas obras, ele continuou na política. Só falta a seleção perder o título para completar o ciclo negativo da escolha, em que haveria só perdedores. Isso porque o famigerado legado da Copa não passa de uma construção retórica dos marqueteiros. O que seria esse legado? Em algumas cidades surgiram projetos mirabolantes; VLT, corredores expressos. A maioria não ficou pronto. São projetos. O que se fez de obras urbanas, mais cedo ou mais tarde, teriam que ser feitas.
E os negócios, o faturamento, sempre lembrados como uma oportunidade ímpar para o comércio, a indústria, os serviços; hotéis, turismo iriam ser os mais beneficiados. Pesquisas indicam que, salvo alguns setores, além das obras que não foram feitas, também a economia não decolou.
O comércio e até o segmento de serviços reclamam dos prejuízos; alguns fizeram grandes investimentos e não estão vislumbrando perspectiva de retorno; os empresários reclamam da paralisação do país, durante a Copa; tudo isso, certamente, afetará a já combalida economia nacional. Se a área privada não decola, imagine-se o setor público, devagar, quase parando. O Congresso antecipa folga. Se festas juninas e Copa são motivos para recesso antecipado, e considerarmos um semestre com eleição, não acontecerá mais nada este ano no Legislativo. Quem são, afinal, os beneficiados com a escolha da Copa no Brasil?
Por mais que a TV Globo se esforce para criar factóides e cobrir até o cheiro da meia de Neymar, a fim de animar os brasileiros, o que se vê de ponta a ponta é um desânimo em relação à Copa, como nunca se viu durante um período pré-Copa, nem mesmo na ditadura militar. O que estaria acontecendo com o brasileiro? Nem os gritos de Galvão Bueno ou o charme de Patrícia Poeta conseguem levar o brasileiro para as ruas. Pesam nesse sentimento frustração, endividamento, logro, desencanto. E não há jogada, por mais bonita que seja, que amenize esse desconforto.
O lamentável em tudo isso é o uso político do evento. O governo prometendo muito e não cumprindo. A oposição apostando no quanto pior, melhor. Se fosse apenas pelo orgulho nacional de mostrar ao mundo que podemos organizar grandes eventos, não há dúvidas de que a população apoiaria.
O nacionalismo é um traço comum e uma força poderosa que desponta também no esporte. Ele fornece um sentido de lugar, história e identidade, e está profundamente enraizado em todos os esportes, mas especialmente no futebol, o esporte mais popular do Planeta. Analistas internacionais admitem que a Copa do Mundo é um evento intrinsecamente nacionalista, e tem sido frequentemente explorado para fins políticos, principalmente pelos regimes de força.
Há um estudo, realizado neste ano, por Andrew Bertoli, doutorando na Universidade de Berkeley, na Califórnia, considerando que sentimentos de nacionalismo tendem a ressurgir em países classificados e escolhidos como sede da Copa do Mundo.
O estudo levou em conta as Copas de 1958 a 2010. O pesquisador concluiu que os países cujas equipes se classificaram exacerbou a ação militar com mais frequência – e com mais violência – do que aqueles que não o fizeram. Na época da Guerra Fria (antes de 1989), as Olimpíadas e a Copa do Mundo não conseguiam esconder a disputa ideológica entre Oriente e Ocidente, sendo a então União Soviética o símbolo que devia ser batido pelos “guerreiros” do Ocidente.
Exemplo desse nacionalismo foi o uso dos Jogos Olímpicos, por Adolf Hitler, em 1936, para exibir a I Guerra Mundial pós-renascimento de seu país; Benito Mussolini, que promoveu o fascismo durante a Copa do Mundo de 1934, e a Argentina, que sediou o torneio de 1978, apenas dois anos depois do golpe militar que implantou a ditadura no País.
A Copa de 1970, no Brasil, também foi usada pela ditadura e pelo presidente Médici, como símbolo de afirmação nacional, de um Brasil pujante, do “milagre brasileiro”, embora nos porões a repressão corresse solta, com prisões e torturas. Assim como na Argentina, no Brasil de 1970 as bandeiras nas ruas tentavam esconder os que desapareciam nos porões da ditadura.
Essa apropriação política acaba contaminando o esporte. No Brasil, desde a escolha do país como sede, o governo tem tentado capitalizar como se isso fosse uma conquista dele. Para realizá-la, entregou a alma à hoje suspeita e mal falada Fifa, atropelando até mesmo o Estatuto do Torcedor e a gestão do espaço público próximo aos estádios. Com uma conta muito cara para os brasileiros pagar. E, às vésperas da Copa, o resultado não podia ser outro.
Os turistas estrangeiros ficam uma hora ou mais na triagem das filas do aeroporto de Guarulhos. Penam mais uma hora na fila do táxi, quando conseguem. Muitas vezes são expropriados por motoristas inescrupulosos. Em algumas cidades, como no Rio de Janeiro, todo o turista precisa ser prevenido contra motoristas de táxi. Mais duas horas no trânsito urbano, até o hotel. Em alguns hotéis, deve torcer para a internet funcionar. Alguns devem estar se perguntando: “O que eu vim fazer aqui”? Ou então ficam mandando imagens de aranhas, dentro do apartamento do hotel, como aconteceu com um jogador da Austrália, em Vitória.
Quem vai assistir aos jogos é uma classe média ou média-alta mais abastada, que pode pagar até mil reais pelos ingressos mais disputados. Se considerar uma família de quatro pessoas, considerando transporte, lanche, etc. assistir a um jogo não sai por menos de R$ 1.500,00. Quem é ele? O brasileiro branco, de olhos claros, como Lula gosta de destacar. Quem tiver dúvidas, basta dar uma olhada nos estádios ou nas imagens.
Pesquisa do instituto Data Popular constatou que, apesar de 86% dos brasileiros declararem torcer pelo Brasil, metade é contra a realização da Copa no Brasil. O brasileiro está conseguindo separar o desempenho da seleção do descalabro em que se transformou a organização e as obras da Copa. Ele sabe que apesar do oba-oba do governo, do pronunciamento como sempre irritado da presidente Dilma, da mídia e das fábricas de cerveja, depois do dia 13 de julho, na vida dele nada mudará. Continuará levantando de madrugada para esperar horas e horas pelo transporte público, nas filas dos hospitais, colégios, repartições públicas.
A Copa pode até ter sido uma beleza para alguma minoria. Nos gabinetes de Brasília. Talvez nos estúdios da Globo. Enquanto os elefantes-brancos ficarão ociosos, como na Grécia onde pistas de atletismo e estádios abrigam cabras, ovelhas e suínos, o brasileiro mesmo continuará na luta diária para chegar ao trabalho e em casa, gastando entre cinco a seis horas para vencer o percurso.
Um evento que tinha tudo para resgatar 1950 e o orgulho nacional. Que pena. Transformou-se numa tremenda decepção pela nossa incompetência de, em sete anos, não termos conseguido transformá-lo numa grande oportunidade. Chegou a hora de dizer “Bye Bye, Fifa. Já vai tarde”.
*João José Forni, é formado em Letras e Jornalismo. É Mestre em Comunicação, pela Universidade de Brasília. E tem o curso MBA em Gestão Estratégica, pela Universidade de São Paulo (USP)
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