Não vejo utilidade numa Comissão da Verdade que me conforte em seu maniqueísmo. Ela pode ser útil apenas se conseguir dar à nossa democracia e às futuras gerações elementos de reflexão para entender e evitar qualquer repetição futura – a história pode ser cíclica – do que aconteceu. Um governo democrático, falido, uma intervenção militar galopante que se transforma em feroz ditadura, uma resistência armada que a seu modo atiça essa ferocidade mas cujo fracasso a exime do risco considerável de tornar-se, também ela, liberticida. Não nos coloco no mesmo plano dos que suprimiram a liberdade de todos, perseguiram a centenas de milhares por razões políticas, durante mais de duas décadas, torturaram sistematicamente e fizeram desaparecer resistentes. Os que transformaram instituições militares em máquinas de repressão, monopolizaram o poder, impuseram a censura, liquidaram as eleições e promoveram um modelo de crescimento injusto e concentrador de renda cujas sequelas persistem. Mas sustento que nossos erros, suas consequências e tudo que resultou da nossa ideológica de então nos países onde chegou ao poder é discussão legítima na Comissão da Verdade.
Não há muita serventia cívica em ficar repisando o que já se sabe há tanto tempo: que houve torturas e execuções autorizadas com desaparecimentos pela cadeia de comando partindo dos presidentes da República daquele regime. Não é mistério quem as praticou. A Argentina e o Chile decidiram julgar alguns dos seus torturadores e carrascos. Por outro lado, o Chile foi forçado a manter o ditador-comandante à frente do exército em toda uma primeira fase de sua democracia. Outros países como a Espanha pós-franquista e a África do Sul optaram pelo caminho de não julgá-los. A África do Sul, no que pese a barbárie do apartheid, optou por uma Comissão da Verdade didática, catártica, com o Arcebispo Desmond Tutu. Com todo respeito a quem sofreu o que não sofri – escapei da prisão e da tortura –, não vejo como politicamente positivo para o Brasil de hoje anular a “anistia recíproca” para julgá-los, quarenta anos mais tarde. Penso que isso politicamente oferece holofotes à extrema direita facilitando seu proselitismo no meio militar. Pavlovianamente, potencializa sua narrativa, lhe faculta novos espaços. E´um jogo de soma zero.
Para entender essa história, é necessário também decifrar o que diabos sucedeu com nossa democracia da Constituição de 46. Meu amigo Darcy Ribeiro dizia que o governo Jango fora “deposto por suas qualidades, não por seus defeitos”. Tenho dúvidas. É bom examinar historicamente como um governo democrático torna-se de tal forma disfuncional, incompetente e fragilizado frente a uma ambição golpista que espreita desde 1954. Como consegue alienar a classe média viabilizando politicamente sua própria deposição. Como em um discurso insensato para suboficiais e sargentos, no Automóvel Club, Jango promove a quebra da hierarquia, mas, depois, nem tenta seriamente resistir à quartelada, no que pese seu dispositivo militar legalista ainda poderoso. Enfim, como as ações desse homem bom – soe suceder em política, na aguda observação de Max Weber – acabam engendrando o mal.
Como uma quartelada de um chefete distante do núcleo conspirador – que ainda não estava preparado – acaba bem sucedida por ação do telefone. Como um segmento extremista da oficialidade, sedento de poder em causa própria, vai por sucessivas subsequentes quarteladas estabelecendo a ditadura: supressão das eleições presidenciais previstas para 1965, perseguições em massa, primeiras torturas e, finalmente, a instituição de um poder ditatorial truculento e corrupto (lembrem-se de Yolanda Costa e Silva…) Como a resistência a esse estado de coisas jamais logra unificar-se e mobilizar a maioria da população pelo restabelecimento da democracia perdida – isso só acontecerá duas décadas mais tarde –, mas parte para uma ação armada socialmente isolada.
Aqui faço um parêntesis para complicar mais um pouquinho os lugares comuns de lado a lado que permeiam esse debate: sim, o que me fez empunhar armas contra o regime militar foi certamente a opressão daquele regime, particularmente o esmagamento violento do movimento estudantil. E sim, ao ingressar na luta armada passei a compartilhar de uma ideologia que não almejava a democracia mas uma ditadura revolucionária. Mas, sim também, ao contrário da Argentina, em nenhum momento atuamos contra um governo democraticamente eleito. Mais: sem poder prová-lo, hoje acredito que um gesto de abertura do regime militar, um calendário de eleições livres, na época das grandes passeatas de 1968, poderia ter induzido os incipientes grupos armados a deixar as armas. Mas ambos os lados compartilharam da fé inquebrantável em ditaduras virtuosas.
No contexto de isolamento social em que ela se deu, a luta armada acabou favorecendo os segmentos mais duros do regime que superestimaram, por vezes comicamente, nosso poderio. Só para dar um exemplo, a VPR, no Rio de Janeiro, na época de suas ações mais espetaculares, o sequestro dos embaixadores da Alemanha e Suíça e sua troca por 110 presos políticos, tinha menos de vinte combatentes… e duas metralhadoras. Além dos erros políticos, da visão autoritária e das vítimas de nossas ações, em situação de confronto, pode-se também atribuir crimes à guerrilha urbana? Em alguns casos sim. Um marinheiro inglês, de 19 anos, estupidamente “justiçado”, na praça Mauá. Um militante que queria deixar uma das organizações executado pelos companheiros por suspeita de poder vir a se tornar um “traidor”. Dois exemplos. Não foram tantos assim, mas, a bem da verdade, aconteceram. E as dezenas de pessoas, totalmente inocentes, alheias a todo aquele conflito, que estiveram em algum momento sob mira de nossas armas ao “expropriarmos” os bancos nos quais eram clientes ou seus carros tomados de empréstimo revolucionário para uma operação? As vítimas de “acidentes” ocorridos naquelas circunstâncias…
A verdade terá sua serventia se for para vacinar a sociedade brasileira contra o conjunto de erros cometidos no Brasil, desde 1946 e não apenas repetir, repisar e reiterar o que todos já sabemos desde os relatórios detalhados do Tortura Nunca Mais. Foi sábia, ao contrário do que pretendem alguns, a escolha do ano da Constituição do pós ditadura getulista como ponto de partida. Não faz sentido apenas apurar a verdade para concluir pela milésima vez que a ditadura militar, de 64 a 85, foi malvada. Faz mais sentido tentar entender porque ela durou tanto tempo, mas, sobretudo, por que antes dela havia fracassado a democracia.
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