Mauro Malin *
Martin Vandenberg, personagem de Amós Oz em Entre amigos, folheia um jornal onde só encontra “barbaridade e feiura e uma dose maciça de lavagem cerebral”. Descontadas a propensão a um radicalismo ingênuo de Vanderberg, e as décadas passadas desde a época de ambientação do livro, nós, os alvos da lavagem cerebral, somos mais enganados pelo que lemos (e mais ainda pelo que não lemos) do que gostaríamos de admitir.
Eis alguns exemplos. São quase bem-comportados, perto de coisas que não saem nos jornais, embora cheguem ao conhecimento das redações. Não lhes diminuo a eventual gravidade, mas vejo com certa ironia tantos pontos de exclamação de personagens do teatro político e leitores indignados. É como se, berrando por causa desses fatos conhecidos, abafassem o ruído de outros, mais pressentidos ou intuídos do que propriamente conhecidos. Mas não desconhecidos, porque, com destaque muito menor, também saem em letra de forma.
1. Por que em nenhum momento os paulistas foram avisados de que caminhavam para a iminência de um colapso do fornecimento de água? Ou melhor: houve avisos dados por técnicos e especialistas, mas eles não tiveram a divulgação necessária a uma tomada de consciência e a um questionamento das políticas adotadas pelo governo do estado.
2. Por que se constata agora uma distância tão grande entre o planejamento dos transportes metropolitanos no país e as necessidades reais da população? Melhor dito: entre a execução de políticas públicas da chamada mobilidade urbana e a demanda real. Em quantos anos está atrasada a construção do metrô de Salvador, por exemplo? (Iniciada em 2000, a obra da primeira linha deveria ter sido concluída em 2008. O panorama não é muito diferente nas outras metrópoles: um serviço, quando existente, caro e insuficiente.)
O mantra da Siemens
Por que a mídia simplesmente repete o mantra da Siemens, usado em press-releases, segundo o qual a empresa “foi a autora da denúncia que deu origem às investigações sobre possível existência de cartel nos contratos” (Folha de S. Paulo, 12/4) no setor de trens? Fica parecendo que a Siemens, um belo dia, descobriu horrorizada que funcionários seus estavam pagando propinas para garantir negócios no Brasil e em outros países.
PublicidadeNão é nada disso. A Siemens, empresa com longa tradição de crimes (usou trabalho escravo judeu durante o nazismo), viu-se acossada por autoridades suíças a pôr termo à prática de corromper funcionários públicos em determinados países. Foi a origem imediata da mudança de atitude da empresa no Brasil. Entregar anéis.
Leia-se, a propósito, reportagem de Patrick Radden Keefe publicada na revista piauí (“O tesouro, o mercador, o ditador e sua amante – Como um bilionário israelense conquistou o controle de uma jazida colossal na Guiné e a dividiu com a Vale”, março de 2014; na sequência vem a reportagem de Consuelo Dieguez “Contrato de risco – Como a Vale assinou um acordo para assumir todos os custos de uma transação bilionária e obscura na Guiné”).
A raiz do fenômeno está descrita assim por Keefe:
“Muitas nações combatem acirradamente a corrupção doméstica, mas se mostram bem permissivas quanto a propinas pagas fora do país. Até pouco tempo, empresas francesas podiam declarar como despesas dedutíveis os valores que desembolsavam à guisa de suborno em negócios no exterior. Recentemente, porém, as normas internacionais começaram a mudar. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos intensificou a observância da Lei de Práticas Corruptas no Exterior, o Reino Unido aprovou uma lei própria e igualmente severa, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico instituiu uma convenção contra o suborno, e várias dezenas de países – entre eles Israel – assinaram o acordo. Empresas de primeira linha, como a Siemens e a KBR responderam a acusações de corrupção pagando multas no valor de centenas de milhões de dólares.”
As multas pagas pela Siemens podem ter ultrapassado a barreira do bilhão de dólares. No verbete em inglês “Siemens” da Wikipedia lê-se que a empresa concordou em pagar uma multa recorde de US$ 1,34 bilhão em dezembro de 2008, após ter sido investigada por suborno pesado. A investigação encontrou pagamentos questionáveis de aproximadamente 1,3 bilhão de euros, entre 2002 e 2006, que dispararam amplo leque de inquéritos na Alemanha, nos Estados Unidos e em vários outros países.
Petróleo e lorotas
3. Por que a mídia levou oito anos para colocar em questão o negócio feito pela Petrobras na Califórnia? (Mais corretamente: para repercutir denúncias que colocaram em questão etc. Não foram jornalistas que apuraram a lambança.)
4. Por que a OGX, de Eike Batista, “levou dez meses para divulgar inviabilidade de campos” de petróleo, segundo a Comissão de Valores Mobiliários (Valor, 11-13/4), e a mídia levou outro tanto, em seguida, para contar essa história?
A lista poderia ir adiante de modo praticamente ilimitado, mas o objetivo é apenas exemplificar.
Agora, vejamos algumas respostas possíveis.
Primeiro, a dependência que os repórteres têm das autoridades. Obter um furo deixou há muito de ser um feito calcado na competência e na tenacidade do jornalista, para se tornar questão de boas relações acríticas com as fontes, ou seja, com autoridades de todo tipo. Não é preciso dizer que esse “furo” será sempre contaminado pelo beneplácito do informante. Esse tema é constante no Observatório da Imprensa desde sua criação, em abril de 1996.
Crise das empresas e redações
Entendamo-nos: o jornalismo brasileiro foi historicamente vinculado ao poder (e aos contrapoderes), mas passou por processos de renovação que corresponderam, de certa forma, a modernizações democratizantes no país. O regime do golpe de 1964 truncou esse processo, especialmente depois da decretação do AI-5, em 1968, mas na segunda metade dos anos 1970 uma parte ponderável do jornalismo se afastou do poder, até que, movido pela campanha das Diretas Já, em 1984 (usada aqui mais como marco simbólico do que com pretenso rigor científico, porque se trata de todo um processo iniciado dez anos antes), tomou partido cada vez mais claro da redemocratização.
Teve seu momento de “glória”, mas a crise estrutural das empresas jornalísticas, que coincide mais ou menos com a passagem para o século 21, foi fazendo com que assessorias de imprensa se tornassem tão ou mais poderosas do que redações. Quando se aponta a dependência em relação às autoridades, não se deve entender que o jornalista fica literalmente na antessala do poderoso esperando a migalha de informação, como já foi um dia, ou tentando obtê-la por telefone, como ainda é em grande parte, mas um complexo de práticas que inclui também a citação de “declarações oficiais” (como a da Siemens acima mencionada).
Mentiras e enganos
Acresce que as autoridades mentem. Mentir faz parte de seu desempenho esperado, embora isso esteja em contradição com a raiz etimológica da palavra autoridade.
Não só mentem. Enganam-se. Erram.
Hitler se absteve de massacrar a Força Expedicionária Britânica (BEF) durante a retirada de Dunquerque (maio-junho de 1940) porque fez uma aposta errada na prevalência política do sentimento de apaziguamento dominante entre as elites britânicas, mas acabou diante da disposição antinazista capitaneada por Churchill.
Stálin recebeu oitenta avisos sobre iminente invasão alemã (Operação Barbarossa, junho de 1941) e não quis acreditar em nenhum deles. Preferiu deixar-se guiar pela crença de que a Alemanha não atacaria e, nos marcos do acordo assinado em 1939 com Hitler, continuou mandando trens carregados de matérias-primas estratégicas, como borracha, até dias antes da agressão.
Podemos acrescentar os seguintes fatores:
>> O Brasil não consegue se planejar, apenas acenar com programas de governo que seguem o calendário eleitoral.
>> O planejamento brasileiro parte invariavelmente da premissa de que a maioria do povo continuará sem acesso a serviços públicos, ou que se contentará com doses miserentas de cuidados, embora o voto seja hoje universal.
Uma verdade humana é que não vivemos como nos dita a consciência. Não dizemos o que pensamos. Sentimos uma coisa e fazemos outra. (V. Grossman, Vida y destino.)
Lula e regulação da mídia
Para contrariar a máxima acima, registre-se o absurdo de uma declaração do ex-presidente Lula reproduzida na Folha de S. Paulo (9/4):
“Temos que retomar com muita força essa questão da regulação dos meios de comunicação. Quando vejo o tratamento a Dilma, é de falta de respeito e de compromisso com a verdade. Não é possível que [a mídia] não se manque que o telespectador está percebendo.”
Em regime democrático, nenhuma regulamentação da mídia vai impedir que veículos de comunicação faltem com respeito a quem quer que seja, nem vai obrigar ninguém a ter compromisso com a verdade – conceito, ademais, de difícil enquadramento administrativo ou jurídico.
Como parece ter se lembrado Lula em meio à alocução, é o destinatário da informação que vai ou não considerá-la correta. E, se a falta de respeito for considerada pelo desrespeitado como crime (calúnia, injúria, difamação), dirija-se à Justiça. Fora disso, trata-se de autoritarismo. Talvez se saiba como começa, nunca como termina.
* Mauro Malin é jornalista e editor-adjunto do Observatório da Imprensa, site no qual o texto foi publicado originalmente.
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