São dezessete pessoas a escrever nesta sala, dezesseis das quais me descrevem, porque sou a professora-escritora-que-lhes-passou-o-exercício, enquanto eu descrevo Austin (claro que não se chama Austin, mas é que ele lembra aquele Austin alaudista de Cortázar, e também o cometa Austin que cruzou o paralelo 23, precisamente sobre São Paulo a 25 de maio, e só daqui a milênios deverá retornar, se retornar) uma trinca cujas conexões lógicas me escapam, suspiro, tragando sofregamente o 14º cigarro da noite, pensando este maço vai já e já para o brejo se eu não maneirar, contando as pontas que restam (ou despontam) molemente do maço.
Por isso, de uma forma que me é indizível (senão, não estaria tentando dizê-lo) eu já sabia que o sortearia, que seria ele, mesmo antes de desdobrar o papel e abrir e ler o nome, que a mim caberia descrevê-lo, mesmo porque cartesianamente falando não posso descrever a mim mesma pelo lado de fora, sem contar que há muito passei da idade de imitar Clarice Lispector e dos mata-borrões.
Mas acontece que são quinze, porque embora supostamente Austin também me descreva, é o único a não observar o, digamos, objeto da composição, como manda o bom senso e as regras elementares da redação. Mas não. E não é o fato de saber-se observado com insistência por mim, a mestra, a escritora, porque sou a dona à sua frente e Austin sabe o suficiente sobre mulheres a ponto de não precisar vê-las, basta sorrir e pronto e chega.
Austin deve ter 30 anos – esta idade limite antes de ser o que se pretende e depois de ter sido o que se pressupõe, quando se supõe inatingível, num patamar de infinitas possibilidades gasosas que não mais se liquefazem, tampouco ainda não se solidificam, como todo rabo de foguete, é sabido – está em qualquer putoroscópio.
Por isso tudo me leva a crer que Austin tenha 30 anos há muito tempo, tanto quanto as pernas cruzadas em elegante tensão e índigo blue; aquelas meias brancas de quem não tem problemas de lavanderia, e sapatos da moda que se trocam aos pares todos os sábados, a camisa de seda estampada e penso: é aí, mas engato a ré e acerco-me da barba (e o verbo é risível) porque uma barba cerrada embute a boca entre o queixo e o bigode, recolhendo as feições para o fundo da fisionomia (ia dizer galáxia, a coisa deve ser contagiosa) submerge o rosto na sombra, tão absorto este Austin, a escrever aplicadamente num caderno ginasiano em homenagem à professora/escritora, tão alheio, este Austin, à mulher à sua frente, ao que deveria, se é que está mesmo a descrever-me.
Os olhos são conjecturas por detrás de uns óculos com aros dourados e do ar intelectual e da barba e quantas máscaras oculta este rosto presumivelmente aos 30 anos? E o advérbio é outra rasteira, pois a razão de fixar-me nessa idade, os tais 30 anos, está no fato de ser a única coisa visível para mim que o observo com irritante insistência há exatamente 15 minutos e 2 ou 3 perguntas sem resposta na alma.
Naturalmente escrever para Austin deve ser muito importante, ainda que devesse olhar o que descreve, mas obstina-se em ocultar-se por detrás de tanta concentração, fixando o vazio, sem olhar para frente, para fora, para mim. Súbito se detém, a caneta em suspenso no nada e retorna furiosamente à carga, perseguindo o papel.
E você a julgar-se inapreensível, Diana Marini, mas ela se faz de surda fingindo examinar as joaninhas estampadas na camisa de Austin, enormes Marias Joanas pernejando castanhamente sobre a seda branca – posso cheirá-la, apalpá-la, rasgá-la com os olhos. De longe. A anos-luz desse Austin.
E aí está você, Diana Marini, de frente para trinta e um pares de olhos, de repente, mais sábia e mais triste do que eles, mas de que terá adiantado tanta previsão se afinal você está dançando a mesma música insensata?
Que fazer, Austin, além de incorrer numa derradeira frase de efeito, acender o último cigarro e deixar-se olhar pelos outros: dar-lhes de frente todo o mapa da cara para que a aprendam de cor.
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