Ao me preparar para deixar a China, onde passei quase três semanas em duas conferencias do Clima, visitas a fábricas solares e discussões com gente do governo, das prefeituras de Xangai e Pequim, acadêmicos, escritores e estudantes, tenho a sensação da experiência extraordinária, vigorosa, rica e plena de contradições. A China é, à la Raul Seixas, uma metamorfose ambulante em escala formidável, o avesso do avesso, a coisa e seu contrário. O Partido Comunista domina, salvo pelo capitalismo triunfante. Empresas estatais competem entre si na economia de mercado. O nacionalismo é um sentimento arraigado, mas modismos estrangeiros os mais bizarros são consagrados. A liberdade é estritamente vigiada e censurada. Na internet, há firewalls e grandes muralhas, contra o Facebook, o Youtube e o Twitter. Mas o similar chinês deste, o Weibo, apresenta um dinamismo crítico surpreendente, embora a qualquer momento possa sofrer uma investida. A “linha vermelha” a não ser ultrapassada é incerta. Seria, em tese, passar da contestação individual à organização coletiva contra o Partido, mas pode, eventualmente, ficar aquém ou além disso. Há um considerável volume de críticas, protestos e mobilizações – sobretudo em torno de questões ambientais – tolerado e, por vezes, estimulado. Certamente muita truculência policial, mas nunca d’antes a vida pessoal dos chineses foi tão livre.
O partido governa minado pelo clientelismo, corrupção e outras mazelas próprias das antigas burocracias do leste europeu, mas, ao contrário delas, consegue assegurar amplos espaços de meritocracia. Incompetência e alta competência coexistem num abraço de tamanduá. Há dinamismo econômico e soerguimento social em escala sem precedentes no mundo. Em duas décadas, quase 600 milhões de pessoas saíram da pobreza. Pudong, o centro de negócios de Xangai, com seus arranha-céus futuristas na margem d’antes “ruim” do rio Huangpu, aconteceu em quinze anos! A poluição do ar, rios e solo é tremenda e a China lidera em emissões de CO2, mas é onde se implementam os maiores projetos de reflorestamento do mundo e mais se investe em energia eólica, solar e veículos elétricos.
A angústia atual do mundo é se a China será a “bola da vez”, o próximo dominó da crise econômica. Seu governo admite possível déficit comercial para 2012. Em algumas regiões a quebradeira já se faz sentir e todo um circuito bancário paralelo pode entrar em colapso fazendo alguns analistas anglo-saxãos prognosticarem a explosão de uma “bolha” gigante. Mas a China tem um colchão de 3.3 trilhões de dólares de reservas cambiais e robusta margem de manobra em relação às suas empresas e bancos estatais que apresentam consideráveis margens de recursos que podem ser retidos em depósitos compulsórios ou tributados, caso necessário. A poupança dos chineses é altíssima. A China tem bala na agulha para fazer frente à queda da demanda dos EUA e da Europa, embora certamente vá enfrentar turbulências.
Independentemente dessa crise, ela já estava no ponto de mutação: transitar sem maiores traumas do modelo exportador baseado na mão de obra barata para um papel maior do mercado interno. Atacar de frente as questões ambiental, de seguridade social e da saúde. A mão de obra chinesa torna-se mais cara no contexto asiático diante de países neo-emergentes como o Vietnam. A política do filho único, implementada a ferro e fogo, aporta seu lado perverso: como cuidar dos idosos, financiar uma seguridade social com uma mão de obra futura mais escassa e cara? Não obstante, o mais provável ainda é que a China mantenha sua extraordinária ascensão, que continuemos grandes parceiros dela para nossas exportações, mas também a padecer internamente dos seus preços demasiado competitivos. Que a coisa e o contrário da coisa mudem, mas se mantenham imutadas.
A China e seus contrários:
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