Depois de tanto tempo na estrada, pagando por um sexo agônico e já desenganado pela Marisete, a perspectiva de uma garota dormir e, principalmente, acordar, comigo na minha cama, era algo – digamos – improvável, para não dizer insólito. Mesmo que a garota fosse a Nelci, de calcanhar sujo.
Sacanagem da minha parte dizer que Nelci tinha o calcanhar sujo. Ela não era necessariamente uma tranqueira. Até que foi muito delicada comigo, e me dedicou um poema chamado “Canjica”.
O problema é que eu era/ou sou um cafajeste que, em vez de encerrar a questão e jogá-la do décimo sétimo andar da minha quitinete … bem, acabei por gostar da Canjica da Nelci, isto é, do poema e não da canjica propriamente dita, aquela que fica entre o púbis, o play e a área de serviço.
E como se não fosse o suficiente, ainda a levei para comer pastel na feira, andamos de mãos dadas … e – é obvio – broxei seguidamente com ela porque, embora cafajeste, não era/nem sou nenhum filho da puta incorrigível.
Além do calcanhar sujo,o cabelo da Nelci também era meio esquisito. Um negócio Rastafari pela própria natureza.
As opinões dela faziam coro ao conjunto da obra. Uma bosta estar escrevendo isso aqui. Nem o Batata. Tampouco o Salsicha .As brochadas seguiam feito uma maldição. Até o Regisnaldo,o grande arquimandrita poliglota, o maior avestruz dos meus amigos, declinou.
Ela foi a primeira garota do meu retorno a São Paulo. Uma história paulistana. A primeira garota típica de fila de cinema de graça do Centro Cultural São Paulo, que quis dar para mim. E eu me sentia lisonjeado e, em princípio, não estava nem aí com as bobagens que ela falava. Consta que o único cara que conseguiu não somente encarar a Nelci, mas ter um “relacionamento” duradouro com ela, foi o Garcia Furtado.
Depois da Nelci, o sujeito fez uma das traduções mais perfeitas de que se tem notícia do Finnegans Wake, clássico dos clássicos de James Joyce – intraduzível até pelo autor no próprio idioma. Uma proeza indiscutível. Todavia, uma proeza que eu –depois de ter passado uma semana com Nelci – só poderia classificar como “café pequeno”.
Quando penso que eles dormiam e acordavam juntos, meu sentimento é de incredulidade. Decerto se misturavam debaixo dos lençóis ao som do Beto Guedes ou bichogrilice afim. E da cama iam direto pro chuveiro, e lá debaixo d’água se davam bom-dia aos beijos. A gente pode esperar qualquer coisa de um sujeito que traduziu Finnegans Wake. Em seguida tomavam o café da manhã, olhos nos olhos. Depois iam ao supermercado de mãos dadas, Nelci e Furtado, e conversavam sobre os problemas do país, sabe-se lá.
As más línguas garantem que compraram um chiuhahua, e o cãozinho foi o motivo do rompimento do casal. G. Furtado queria chamá-lo Dédalus. Nelci, porém, não abria mão de sua Canjica. Para ela, o nome Canjica encerrava todas as demandas, a poética e a ética, a humana e a canina. Era uma filosofia de vida superior. Dédalus é o cacete, tá ligado?
James Joyce? Questão de principiante diante da convivência diuturna ao lado de Nelci, a mulher canjica. Você é um herói G. Furtado, e deve ser um grande sujeito também.
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Foi na Copa de 2002.
Naquela época, eu passava minhas noites no bar do cearense,que fica na frente do Centro Cultural São Paulo. Onde conheci a Nelci e o Bactéria. Hoje, o Bac é meu grande chapa, ele que era bilheteiro do falecido grupo de teatro Cemitério de Automóveis. O homem sorriso, a simpatia do guichê.
Bar do cearense. Um lugar freqüentando pelo pessoal sem grana que mosqueava no CCSP, além dos artistas e dos bebuns de praxe. Pois bem. A Copa do Mundo coincidiu com a mostra de teatro , 1 real a entrada, um frio dos diabos, e o boteco cheio. Em meio a uma discussão acalorada sobre os jogadores bons-moços de hoje, e os bandidos que sentíamos falta de ver na seleção, entre uma e outra talagada violenta de conhaque, na euforia da lembrança de Paulo César Caju, quando cotejávamos o futebol arte com a babaquice da dupla Zagallo & Parreira e, imediatamente depois dos elogios rasgados a Romário, quando alguém associou o baixinho à ilustre memória de Serginho Chulapa, bem, nesse momento, Nelci interrompe a discussão aos gritos.
Ela conseguiu – vejam só – silenciar a arquibancada e a geral justo na hora em que o inigualável Serginho Chulapa ia chutar a cabeça do Leão:
– Gente,gente! Chega de passado! Vocês têm que valorizar o que é nosso hoje. Somos Penta!
Difícil defender a Nelci. Tinha o problema da voz esganiçada. O chapeuzinho ensebado. Em uma palavra e em todas as situações: Nelci era inconveniente.
E ela grudava, pegava no pé e estava cheia de projetos e pesquisas em andamento. “Cê tem que ficar ligado, cara! É genial, cara!”
Tudo para Nelci era “genial, cara!”. Tinha o dom de se intrometer em todas as conversas, independentemente do assunto, deixava sua opinião genial registrada, além de empatar a foda de todo mundo, também se enfiava no apartamento dos caras para não sair nunca mais.
Nelci fez cocozinhos de peixe na minha privada. Não sabia dar a descarga, e – para o bem e para o mal – não tirava aquele chapeuzinho verde da cabeça… tipo de ladinho. Embaixo do chapeuzinho, o cabelo rastafari.
Não sou um cara exigente. Muito pelo contrário: já encarei muito tribufu na minha dolce vita, mas, toda vez que tocava no cabelo rastafari da Nelci, eu sentia vertigens da época que morava em Florianópolis. Aquilo me lembrava reggae e maconha, a Ilha da Magia, essas coisas que eu não posso nem cogitar que logo o Djavan vai aparecer nas minhas lembranças, e aí, mano, é vômito certo. Uma coisa é o Rastafari de salão, outra completamente diferente é nascer com o Demônio da Tasmânia encruado no couro cabeludo.
A mulher canjica, do bom coração aloprado. Assim era Nelci. Nem vou falar sobre minhas seguidas broxadas. A essa altura do campeonato é algo perfeitamente compreensível e redundante. Né?
Levei pra casa.
“Genial, cara!” Eram umas oito horas da manhã. Ela dormia profundamente. E eu precisava tomar uma atitude. Pulei da cama para escrever. Abri as cortinas pra ver se ela “se ligava” e dava o pinote. Por incrível que pareça, em 2002, eu ainda escrevia numa Olivetti Lettera. Comecei a batucar violentamente na maquininha de saudosa memória: “A sabedoria zen-torresminho é algo que me incomoda em Leminski, sem falar nas piscadelas de cumplicidade … ” Etc,etc.
E ela nem aí, continuava a roncar. Nelci roncava, e – é claro – deixava escorrer uma babinha desencanada da beiçola, a mesma babinha todas as vezes, o que me irritava não era exatamente a babinha, mas o fato de que era sempre o mesmo desenho que se projetava no lençol. Canjica.
O que significa James Joyce, eu me pergunto, perto da babinha de canjica da Nelci? Nada, papo esotérico de concretista pré-histórico, musgo.
Da mesa de trabalho, observava o calcanhar sujo dela. O calcanhar sujo de Nelci … que tristeza. Nelci também atacava de atriz, porém o calcanhar nada tinha a ver com o tablado, era uma característica dela, intrínseca, feita sob encomenda pelo mesmo DNA que já havia sacaneado a pobre coitada com aquele Rastafari natural. O que dizer?
Bem, serei generoso e direi apenas que o calcanhar sujo atrapalhou minha concentração. Eu tinha que dar um jeito.
O ponto fraco dela (provavelmente por falta de compreensão) atendia pelo nome de Paulo Leminski. Nelci veio de Londrina, e eu não sei o que acontece com esse lugar. Deve ser a água do rio Tibagi. Sei lá. O tal do Leminski é um Deus por aquelas bandas. Não é que ele seja ruim, até que tem umas coisas boas.
O problema são as viúvas. O cara deixou viúvas físicas e metafísicas. De longe, prefiro as viúvas do Antônio Marcos. No enterro do músico, tinha pelo menos sete. Mas as viúvas do Leminski, porra, são muito geniais pro meu gosto, se é que me faço entender. Metidas a cults. Um nojo. Para ser mais objetivo, diria que até as viúvas do Raul Seixas são mais palatáveis, a diferença, no caso das viúvas do Leminski, é que você (no caso, eu) não pode nem tirar um singelo sarro, e dizer que elas são histéricas, por exemplo.
E o mais grave, ostentam uma sabedoria ancestral, algo que fica entre um zen-budismo de feirinha hippie e o sovaco do chapeiro. Elas “incorporaram” a sapiência bacon-zen do poeta como se fossem exaustores de boteco, e é essa gente, enfim, que, a pretexto de uma erudição que é pura gordura e não é delas, mas do “bandido que sabia latim” ( percebem como tenho boa vontade?) são elas que vêm cagar zen-torresminhos nos meus cornos. Puta chatice.
Nelci, que sabia apenas juntar o precário verbo “se liga” com o abominável “genial,cara!” enchia o meu saco com o tal do Leminski; a fim de me intimidar – coitada … – citava o poeta quando atravessava a rua, quando peidava, quando exigia que eu ouvisse Rolling Stones (ela não se conformava quando eu dizia que preferia Pepino di Capri); enfim, Nelci não me dava uma trégua sequer, ela me aporrinhava com os seus cocozinhos de peixe, e até os girinos que ela largava na minha privada – vejam só – gritavam “Leminski, genial cara, se liga”. Inferno.
Debaixo do chapeuzinho verde-ensebado, dia e noite, acordada ou dormindo, a desgraçada ruminava “genial cara, Leminski, se liga” Foi quando dei uma chacoalhada nela, e disse: “Ouve só,Nelci:”
– Ouve isso.
– Ahn…
– Acorda!, Nelci
– Unhs … – fez esse “Unhs” com uma intimidade que me deixou enfurecido, e ensaiou acordar. Eu tive ímpetos homicidas. Ia jogar um balde de água fria naquela folgada.
– Ouve só o que eu escrevi sobre o Lemins…
Antes de eu dizer “ki” ela saltou da cama completamente pelada (até que tinha uns peitões legais), e protestou:
– Com o Leminski Não!
– Tá maluca, Nelci ?
– Você não vai zoar o Leminski !
– Se liga, Nelci. Ouve só. Ouve!.
Quando comecei a ler o que havia escrito, ela, indignada, se embrulhou no lençol e logo começou a catar as roupas espalhadas pelo chão. Antes de finalmente ir embora para sempre, me ameaçou:
– Isso não vai ficar assim.
Tive que levá-la à padaria. Ela pediu um misto quente, e depois daquele sanduíche, pediu um café com leite e mais um tampico e mais a passagem do ônibus que eu, confesso, paguei com enorme satisfação e contentamento. Foi a vingança de Nelci. Para coroar sua fúria, ela me obrigou a acompanhá-la até o ponto de ônibus, perfeito. Antes de subir no Jardim Miriam, fez uma ameaça: “Fica ligado, cara”.
Intrigante, “fica ligado, cara”, pensei, é uma variação de “se liga, cara”. O que será que Nelci teria querido me dizer com isso?
Recorri a Paulo Leminski. Sejamos justos, ele é um grande escritor, tá ligado? E eu posso tranquilamente (e com autoridade) dizer que “o bandido que sabia latim” ultrapassou James Joyce. No meu caso, sim. Sem medo, afirmo e reafirmo: se não é melhor, é de fato mais eficiente. Eu acho até que ele transcendeu Domingos Autan, conhecem?
Na prosa leminskiana, temos a associação da metafísica zen de boteco com a citronela, manjado repelente industrializado por Autan para espantar os mais ferozes borrachudos africanos. O efeito prático é devastador. James Joyce não chegaria a tanto. Nem aqui, nem em Dublin, e muito menos na bacia do rio Tibagi.
Tanto é que Nelci escafedeu-se. A mulher canjica nunca mais apareceu. Se ligou. E isso é obra – tenho de admitir, reconhecer e tirar o chapéu – de Paulo Leminski. Não é genial, cara?
Canjica faz parte do Memórias da Sauna Finlandesa (ed.34) – uma pena que a comunidade literária tenha negligenciado esse livro. Não é piada, não. Esse ente chamado “comunidade literária” existe, e, se você que é metido a escritor não se comportar direitinho, dança na mão deles. Claro que finjo que não acredito nisso. Uma banana para esses mafiosos.
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