Carol Ferrare
Apesar da concorrência para entrar em um curso de Medicina ser elevada em todo o país, tramita na Câmara uma proposta para proibir, ou pelo menos limitar a criação de novas vagas para a formação de futuros médicos. O Projeto de Lei 65/2003 é de autoria do atual presidente da Casa, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) – médico formado pela Universidade de Brasília (UnB) em 1975 – e proíbe a criação de vagas em cursos de Medicina pelos próximos dez anos.
O projeto atende a um pleito do Conselho Federal de Medicina (CFM). De acordo Chinaglia, o principal objetivo da proposta é “proteger a população do país contra a gravíssima ameaça resultante de cursos de má qualidade”. Para o presidente da Câmara, a proliferação dos cursos – entre 1985 e 2007 a oferta aumentou de 85 para 167 cursos – é fruto dos interesses de uma “verdadeira indústria do ensino”.
O segundo objetivo, argumenta o autor da proposta, “é proteger os médicos brasileiros formados em instituições de bom nível do aviltamento de suas condições de trabalho”.
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A alegação do deputado e do CFM baseia-se em uma conta simples: o Brasil tem hoje 470.374 médicos. Considerando a população atual estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE) que é de 189.197.679 pessoas, há um médico para cada grupo de 402 habitantes.
“Só a Índia tem mais médicos que o Brasil”, afirma Geraldo Guedes, médico conselheiro do CFM.
Para justificar o projeto de lei que proíbe a criação de novas vagas, eles usam uma pesquisa atribuída à Organização Mundial da Saúde (OMS) que diz que o razoável seria um médico para cada mil habitantes.
Só há um problema nisso: em seu portal na internet a OMS diz que a organização “não define ou recomenda o número desejável de médicos, enfermeiros e dentistas por habitante”.
A organização também esclarece que o índice surgiu de uma interpretação equivocada de um plano decenal de saúde para as Américas elaborado em 1973. “O documento continha uma série de recomendações para os países americanos, entre os quais alcançar uma média regional de oito médicos, dois odontólogos, 4,5 enfermeiros e 14,5 auxiliares de enfermaria para cada 10 mil habitantes – valores associados a uma realidade de 30 anos atrás”.
Substitiutivo
Apesar de ter sido apresentado como sugestão do Conselho Federal de Medicina, o texto original de Chinaglia não tem mais o aval nem do CFM, nem da Frente Parlamentar da Saúde.
“O PL foi apresentado pelo Arlindo para chamar a atenção para a questão. Proibir pura e simplesmente a criação de novas faculdades é algo que não vai acontecer, pois o país tem desigualdades e a gente sabe que, enquanto tem estados com muitas, outros têm quase nenhuma”, explica o deputado Rafael Guerra (PSDB-MG), presidente da frente.
Guerra articulou com o presidente da Câmara e com o relator da proposta na Comissão de Educação e Cultura, deputado Átila Lira (PSB-PI), a confecção de um substitutivo ao PL 65/2003. Inicialmente, o plano era discutir detalhes do novo texto em uma reunião reservada, submetê-lo ao crivo da Frente da Saúde hoje (4) e, só então, votar a proposta no plenário.
Entretanto, a reunião reservada foi suspensa e ficou decidido que o Plenário votará o quanto antes o texto substitutivo elaborado por Lira, que agregou o conteúdo de uma proposta da ex-deputada Ângela Guadagnin (PT-SP) redigida em 2003, quando ela foi relatora da Comissão de Seguridade Social.
Na proposta, Ângela elimina a proibição por dez anos e regulamenta a necessidade de parecer do Conselho Nacional de Saúde para a criação não só dos cursos de Medicina, mas também de Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional.
Além da ampliação do escopo de cursos atingidos, na versão de Átila Lira consta a necessidade de aprovação do curso pelo conselho fiscalizador da profissão e a regulamentação dos pré-requisitos já estabelecidos na portaria 147 do MEC.
A portaria está em vigor desde fevereiro deste ano e prevê que a criação de novos cursos deve levar em conta a demanda social e parâmetros de qualidade; integração com o Sistema Único de Saúde; e existência de docentes qualificados.
“O que queremos é botar ordem”, afirma o conselheiro Geraldo Guedes. Questionado pelo Congresso em Foco, ele negou que a flexibilização da proposta esteja ligada às críticas de que o texto é corporativista e não leva em conta a necessidade de democratização do acesso ao ensino superior.
“A essência dos dois textos é o zelo pela qualidade. Estamos zelando pela qualidade do ensino, portanto defendemos os interesses maiores da sociedade, que quer ter médicos bem formados. Todo mundo quer um médico bem formado”, disse.
Concorrência acirrada
Em 2005, quando foi concluído o último censo da educação superior, 68.834 pessoas se inscreveram no vestibular para o curso de Medicina. Havia 14.661 vagas. Ou seja, os vestibulandos tiveram que enfrentar uma concorrência média de 4,69 candidatos por vaga. Considerando apenas as universidades públicas, que oferecem 6.144 vagas em todo o país, a concorrência sobe para 35,2 por vaga.
Na Universidade de Brasília, por exemplo, a concorrência no último vestibular de 2006 passou de 80 por vaga. É comum que candidatos passem cinco ou seis anos em cursinhos preparatórios antes de conseguirem se tornar estudantes de Medicina.
Como pelo a média atual no Brasil é de um médico para cada grupo de 402 habitantes, os parlamentares alegam que o país deveria parar de “produzir” novos médicos e cuidar para que os já existentes fossem distribuídos de maneira mais equânime entre as regiões.
Redistribuição
A média de médicos por habitantes no Brasil está, hoje, no nível da de países desenvolvidos. Entretanto, o próprio CFM admite que há uma alta concentração de profissionais nas capitais e não há médicos em número suficiente no interior do país, especialmente na região Norte.
Em Rondônia, por exemplo, de acordo com o estudo “Abertura de Escolas de Medicina no Brasil – Relatório de um cenário sombrio”, fora da área metropolitana cada profissional é responsável por 4.466 pacientes. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais (Inep), o Amapá não tem uma faculdade de Medicina sequer.
Para o conselho, contudo, esse não é um problema de falta de médicos, mas de má distribuição dos profissionais já formados. “A insistência em corrigir os problemas referentes à atenção à saúde da população brasileira atuando exclusivamente sobre uma de suas causas, a falta de médicos, não só não permitirá que o mesmo seja resolvido como poderá levar à superprodução de médicos, criticável pelo desperdício de dinheiro público, pelos efeitos daninhos sobre a qualidade da formação acadêmica, e pela queda dos padrões éticos que enseja”, diz o relatório.
Moratória
Não é de hoje que as entidades médicas tentam frear o aumento do número de profissionais da área no país. Em 2003, quando o agora senador Cristovam Buarque (PDT-DF) era ministro da Educação, o Conselho Nacional de Educação (CNE) determinou a suspensão das autorizações para a criação de novos cursos por 180 dias. Ao assumir o ministério em 2004, o hoje ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro, prorrogou a moratória por mais 60 dias.
A medida foi inspirada em outra, datada de 1971. Na época, por pressão da Associação dos Médicos do Brasil (AMB), o Ministério da Educação publicou a primeira portaria suspendendo a criação de escolas médicas: entre 1971 e 1976 nenhuma nova faculdade de Medicina foi aberta no Brasil. O mesmo se repetiu entre 1979 e 1987.
Na década de 1990 foram criados 17 novos cursos. Entre 2000 e junho de 2005, 52, sendo 32 em faculdades particulares. De acordo com o Inep, nos três primeiros anos do governo Lula, foram 34. Durante toda a gestão de Fernando Henrique Cardoso – e, por conseqüência, do atual deputado Paulo Renato de Sousa no Ministério da Educação – outros 34.
“Quando estava no ministério, todos os cursos criados cumpriam todas as condições necessárias e tinham qualidade”, defendeu-se Paulo Renato.
Atualmente, segundo o CFM, 78 pedidos de criação de cursos de medicina aguardam parecer do MEC. Desde fevereiro deste ano, também é pré-requisito a aprovação pelo Conselho Nacional de Saúde que, de acordo com a Portaria 147 do MEC, deve levar em conta demanda social e parâmetros de qualidade, integração com o Sistema Único de Saúde e existência de docentes qualificados.
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