Estou quase convencido de que existe vida além do óbvio. Nos últimos dias, o país lavou (está lavando) sua roupa suja nas ruas. Finalmente Jesus Cristo e Fred Mercury deram passagem pra molecada. Algumas máscaras estão caindo, e antigas reputações foram tragadas pelo fluxo selvagem de uma velha senhora chamada História.
No dia 12, a reação do status quo às primeiras depredações foi aquela que se esperava: imprensa e governo desceram o porrete sem dó nem piedade. Tacharam os garotos de vândalos e baderneiros. Editoriais furiosos, colunistas em surto e apresentadores virulentos ecoaram suas pequenezas diante da História que se desenrolava sob suas barbas sujas de entorpecimento e comodismo. Impossível entender o que se passa nas ruas se não soubermos nos antecipar, enxergar além do óbvio. A propósito: grandeza é algo que não se ensina em manuais de redação nem em cursos de neurolinguística. Revelaram-se a miopia e a fragilidade dos vários poderes estabelecidos. A molecada se insurgiu – também – contra esses paredões de manipulação e comodismo.
E partiram pra cima. Há duas semanas ocupam as ruas e deixam suas marcas de resistência e indignação. Agências bancárias foram pichadas e devidamente quebradas. A roda da História deu sua primeira volta.
No dia 15, os detentores dos porretes e dos cercadinhos, aqueles que vociferavam do alto de suas torres de marfim contra os supostos baderneiros, foram vítimas do próprio veneno, e o feitiço voltou-se contra os feiticeiros. Apanharam de seus próprios argumentos, e foram obrigados a capitular. O primeiro a se corrigir publicamente foi o apresentador Datena, em seguida os editorialistas da Folha. Os mesmos que um dia antes defendiam a polícia truculenta do governador Alckmin tiveram de rever suas opiniões e Datenaram, embora não se retratassem de peito aberto como fez o ex-cineasta e ex intelectual, ex-amigo do Nelson Rodrigues e atual falecido Arnaldo Jabor.
Bem, até aqui, apenas relatei os fatos.
De uma semana para ontem (escrevo na manhã do dia 19/10), mais de 100 milhões de pessoas saíram às ruas. Depois do fiasco do dia 13, a polícia praticamente atuou como figurante (deu linha, afrouxou perigosamente… até quando?), e interveio apenas em casos isolados, especialmente em Porto Alegre, Belo Horizonte e no Rio de Janeiro. Anteontem, dia 17, pela primeira vez na vida, ao longo dos meus 47 anos, eu e uma legião de engolidores de sapos participamos de uma manifestação coletiva e popular – classe média também é gente, dona Chauí. A senhora deve estar chocada pelo fato de que o grito (?) não veio da periferia, de lá só vem demagogia e a trilha sonora da novela das sete. Mas não vamos mudar de assunto. Toda solidariedade à revolta do Vinagre. Toda minha solidariedade à convulsão.
Dia 18 de junho. Bem, moro no bairro da Glória, e em menos de dez minutos de caminhada cheguei ao largo da Carioca, onde encontrei meu amigo Zé Gustavo e esposa. Nos dirigimos rumo à Candelária pela Rio Branco, eram mais ou menos umas 18h. A passeata que saiu da Candelária avançava no sentido contrário. Nisso, eu vejo um grupo de punks e me despeço do casal amigo. Em princípio, avaliei que se tratava de uma molecada sinistra, eles me cercaram, eu os encarei e me identifiquei: “onde é que vamos botar pra fuder?”
PublicidadeGanhei uma flor de um garoto do grupo que abriu sua jaqueta de tachinhas e me agrediu com sua camiseta estampada com nada mais nada menos que o focinho de Mahatma Gandhi. Puta azar que eu dei, mas não podia voltar atrás. Marchei ao lado de punks pacifistas até chegar à Cinelândia, onde me desgarrei do grupo e, como forma de protesto, entrei no primeiro McDonalds e devorei um quarteirão com queijo. Voltei pra casa.
Por volta das 19h, Aninha, o terror da Abaçaí (lembra dela, Guedes?), liga pro meu celular e diz que um grupo de malucos tá botando o terror na Alerj, ah, que bom. Ela diz que vem correndo pra Glória, e pede abrigo. Eu é que não ia ficar em casa. Ofereço o bar da esquina. Tomamos umas pingas, e quer saber? Vamos pra lá, Aninha, vamos engrossar o caldo. As ruas estão desertas, os bares fecharam as portas. No Amarelinho, estudantes, manicures e alguns engravatados acompanham o confronto no Palácio Tiradentes como se fosse uma final de Copa do Mundo. Não tem polícia na rua. Atravessamos a Cinelândia, logo à esquerda, na Evaristo da Veiga, eu pressinto o vulto do quartel da antiga rua dos Bonobos, atual Evaristo, a fungar no meu cangote, dá medo. Depois da Rio Branco, seguimos pela Araújo Porto Alegre, e eu lamento não carregar um spray. Os azulejos do Palácio Capanema pediam pra ser pichados. Mais duas quadras e chegamos na Presidente Antônio Carlos. De longe, já dá pra ver o clarão e ouvir o barulho das bombas. Na frente do prédio do Ministério da Fazenda, um monge aparece em nosso caminho e nos aconselha a manter distância.
Aninha cede, eu decido seguir em frente e a arrasto até a Almirante Barroso. O pau come na Alerj. Um útero me chama. Como se o clarão do fogo e o barulho das bombas estranhamente me ninassem. O que era medo transformou-se em calmaria, eu estava calmo, perigosamente calmo e seguia em paz num transe hipnótico rumo à fuzarca.
Aninha me segura. Talvez tenha salvado minha vida.
Hoje, eu avalio que nunca estive tão dentro de mim como naquela noite. Em sintonia com a molecada que tentava invadir a Alerj, em sintonia com os “vândalos” que fizeram/estão fazendo a roda da História girar. Em sintonia com a convulsão, eu estava/estou na rua como se tivesse de pijama, à vontade no quarto de casa. Os míopes jamais entenderão a natureza do vulcão. O tempo é de generalização. O vulcão cospe fogo independentemente da tabela da Copa do Mundo. Daí o medo e o dedo apontado na direção dos “vândalos” e dos “baderneiros”. Chega a ser divertido acompanhar os apresentadores de telejornais, que ainda se imaginam ser os narradores da História, trocando olhares de pânico, e dando a velha notícia prum público que cansou de ser manipulado.
O monopólio da violência, da estupidez e do jogo sujo, anotem aí, William Bonner e Datena, não é mais dos grupos de comunicação, nem do Estado, nem das Igrejas e muito menos dos agiotas. Vide os alvos atingidos. Ao contrário do que vocês dizem, os “baderneiros” não destoam da democracia.
Eles destoam de vocês. E quanto mais vocês insistirem na paz de suas conveniências, mais as suas credibilidades serão escoadas ralo abaixo. Esta semana, na frente da Prefeitura de São Paulo, os tais vândalos atearam fogo num furgão da Rede Record. Cabe lembrar que minutos antes do incêndio, Marcelo Resende, subproduto do sensacionalismo da escola Datena, vociferava e cantava de galo pra milhões de telespectadores: “O único carro na multidão é nosso”.
Todavia, a multidão não é de ninguém. Os limites impostos pelas mensagens carcomidas e as velhas formas de representatividade experimentam o crepúsculo. A carinha de medo da Fátima Bernardes é um tesão. E isso não é só aqui no Brasil. Os limites que o entorno desse círculo infernal de poder e submissão estabeleceram foram postos em xeque pelos “baderneiros”. São eles, e não o pessoal da paz e do amor, que dizem: “não seremos mais reproduzidos por suas imagens. Não somos o espelho de sua covardia e comodismo, vocês estão de um lado e nós estamos do outro”.
A partir dos acontecimentos recentes, não seria arriscado afirmar, apesar da contrariedade do andar superior e da reação violenta que, com certeza, virá (questão de pouco tempo exército nas ruas), que os “baderneiros”, os “vândalos” e os “arruaceiros” tomaram conta da narrativa: são os narradores da nova história. Bandeira pirata. E eu, que sou um cara bonzinho, dou uma dica: saiam de cena enquanto é tempo, Datena, Wiliam Bonner, Bispo Macedo, Renan Calheiros, Dilmão, famílias Civitta, Mesquita, Setubal, Salles & cia ltda. O enredo não tem itinerário. A erupção está apenas começando. O vulcão vai cuspir fogo e morte. Entendam o recado dos moleques: a paz e o amor são atributos e extensão da guerra, a molecada está em guerra para mudar o mundo. O que vem depois não é problema deles.
Voltando à Almirante Barroso. Puxado pela Aninha (obrigado, querida, se não fosse você, eu não estaria aqui escrevendo essa crônica), voltamos ao Amarelinho. Os putos meteram latinha de cerveja no copo de chope. Não paguei a conta e me pirulitei pra escadaria da Câmara Municipal, logo ao lado. Lá, encontrei meu amigo Clow vestido de narizinho preto. Bom sinal. Quem mora em Santa Teresa e arrabaldes sabe quem é o Palhacinho dos Oráculos. Cinelândia vazia, Aninha em estado de choque. Palhacinho me ofereceu um oráculo que dizia o seguinte: “Não me tires o que não me podes dar”. Taí. Tá dado o recado de Diógenes de Sínope ( 404-323 a.C). A mensagem que viajou dois mil e quatrocentos anos até chegar ao seu destinatário, que não por acaso sou eu mesmo, a entendam como quiser. Quanto a mim, já disse no feicibuqui e repito aqui: o meu desejo é que o imponderável saia de controle. Ah, Fátima Bernardes: Buuu!
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