Lucas Ferraz e Ana Paula Siqueira
A revelação feita ontem pelo Congresso em Foco de que 105 deputados e senadores respondem a 195 inquéritos e ações penais no Supremo Tribunal Federal (STF) reacendeu a polêmica sobre a prerrogativa dos parlamentares brasileiros de serem julgados apenas pela mais alta corte do país – o chamado foro privilegiado.
Está pronto para ser votado pelo Plenário da Câmara um projeto de lei que obriga os tribunais a priorizar o julgamento de ações que envolvam autoridades políticas em crimes comuns e de responsabilidade. A expectativa é que a Câmara examine a proposta, que tramita em regime de urgência, até outubro.
Segundo o autor do projeto, deputado Antonio Carlos Pannunzzio (PSDB-SP), o objetivo da mudança é tornar mais rápida a tramitação desses processos e evitar que autoridades que tenham direito ao foro privilegiado usem a prerrogativa para se livrarem das acusações, prática comum na política brasileira.
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“Com isso, toda e qualquer acusação terá tramitação rápida, com a condenação ou não”, afirmou o líder do PSDB na Câmara. “Queremos acabar com essa áurea de impunidade que há atualmente e buscar mais agilidade”, acrescentou o deputado.
Alcance limitado
Apesar de ser considerada “positiva” por grande parte dos parlamentares, a mudança ainda é vista como insuficiente por outros. Para o deputado Flávio Dino (PCdoB-MA), ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), a medida é boa, mas tem impacto limitado. “Essa prioridade se choca com outras, como a preferência por processos originários de CPIs e que envolvam idosos”, considera Dino.
O deputado cita dois projetos de lei que, segundo ele, surtiriam maior efeito contra a impunidade. Um, de autoria dele, determina que juízes e desembargadores auxiliem os ministros em ações penais com origem no STF e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para garantir a celeridade dos julgamentos.
O segundo, do deputado Paulo Renato de Souza (PSDB-SP), cria um tribunal específico para julgar casos de corrupção, batizado de “Tribunal da Probidade Administrativa”. Ambos os projetos estão na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. “Esses causariam mais impacto e mudariam efetivamente o funcionamento dos tribunais superiores”, acredita o ex-juiz.
Fim do foro privilegiado
Já o presidente da Frente Parlamentar de Combate a Corrupção, deputado Paulo Rubem Santiago (PT-PE), defende uma solução mais radical: a extinção imediata da prerrogativa de foro. “Tem que acabar com o foro privilegiado. O projeto do deputado Pannunzzio tem boa intenção, mas é preciso um corte mais profundo. O mandato de um parlamentar não pode ser biombo para ele se esconder de algo”, defende.
Em tese, o foro privilegiado serve para garantir o exercício democrático das prerrogativas inerentes à função parlamentar e evitar que deputados e senadores sejam investigados ou julgados à luz das disputas políticas locais. Os seus defensores lembram que ele reduz as chances de se reverter uma decisão desfavorável, já que contra as decisões do Supremo, instância máxima do Judiciário, não há recurso.
Porém, na prática, segundo cientistas políticos, juristas e advogados, a prerrogativa tem favorecido a impunidade. Até hoje, nenhum parlamentar foi condenado pela mais alta corte do país. A maioria dos casos, aliás, sequer chega a ser concluída pelos ministros, devido ao elevado número de processos que cada um deles tem para julgar.
Para se ter uma idéia da sobrecarga, cerca de 10 mil processos foram despejados por mês nas mãos de cada um dos 11 ministros do STF no ano passado, pouco mais do que em 2005. Naquele ano, cada gabinete recebeu mensalmente algo em torno de 9 mil processos.
Criminosos com mandato
“Há um monte de criminosos que se candidatam para ter foro privilegiado e que não têm o menor interesse pelas questões sociais”, afirma Antônio Flávio Testa, cientista político e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB). Na opinião dele, o foro privilegiado abre caminho para a impunidade.
O presidente da Comissão de Combate à Corrupção do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Amauri Serralvo, considera que o STF não tem estrutura para investigar e julgar os processos envolvendo parlamentares.
“A pauta é sobrecarregada. No Brasil cada ministro do STF tem que julgar cerca de 15 mil processos por ano. Nos Estados Unidos, são aproximadamente 150, ao todo, durante o ano. Não temos instrumentos eficazes para que o juiz possa exercer sua função”, avalia.
Antonio Testa também identifica no julgamento das ações contra parlamentares um desvio nas funções do Supremo. De acordo com o pesquisador, o tribunal não deveria analisar crimes comuns envolvendo autoridades. “Os crimes comuns deveriam ser julgados pela Justiça comum, pelo Superior Tribunal de Justiça. Apenas questões ideológicas e políticas deveriam ser julgadas pelo Supremo”, considera.
Judiciário se defende
A presidente do STF, Ellen Gracie, rejeita a tese de que o foro privilegiado favorece a impunidade. Para a ministra, o foro especial para autoridades contribui para acelerar o julgamento em vez de retardá-lo. “O foro chamado privilegiado significa, na verdade, que os acusados têm uma única chance de defesa e uma única chance de absolvição ou condenação”, avalia a ministra.
Esse, aliás, foi um dos argumentos que Ellen Gracie usou, ao final do julgamento do mensalão, na semana passada, para defender a eficiência do Supremo para tratar de processos criminais. Segundo ela, das cerca de 50 ações penais que correm no STF, metade tramita na corte há menos de seis meses. A mesma eficiência, acrescenta, vê-se no andamento dos inquéritos. Já no caso das petições criminais, o índice é maior: 67%.
Tribunais superiores
Além de deputados e senadores, podem ser processados pelo STF o presidente, o vice-presidente e o procurador-geral da República; os ministros de Estado; os comandantes da Marinha, da Aeronáutica e do Exército; chefes de missões diplomáticas; ministros do próprio Supremo; e membros dos tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União.
Houve um período, contudo, em que as regalias oferecidas aos parlamentares eram ainda maiores. Até a promulgação da Emenda Constitucional 35, em dezembro de 2001, o STF precisava pedir autorização à Câmara e ao Senado para abrir processo contra os congressistas.
Ao Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, cabe processar e julgar, nos crimes comuns, os governadores de estados e do Distrito Federal, os desembargadores, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do DF, os juízes dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os integrantes do Ministério Público da União.
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