“A imaginação não se reproduz em cativeiro”. (George Orwell)
Existe uma diferença gritante entre o escritor e o charlatão. É o estilo.
A pior notícia é que um charlatão pode ser brilhante. E um grande escritor pode, à primeira vista, nos parecer insosso e acuado. Só que o brilho do charlatão encerra-se em si mesmo. No artista de gênio, o grito é um prolongamento do estilo ( um exemplo evidente de um grito acuado e genial: Franz Kafka), e depois surge, naturalmente, a voz. A voz ou a assinatura é uma consequência do estilo fortalecido pelo grito. Daí a fugacidade do charlatão e a transcendência do gênio.
Na época morna e omissa que vivemos, às vezes um grito (que, eu lembro, é prolongamento do estilo) pode iluminar as trevas.
A grande notícia que venho transmitir a vocês, argentinos, é que alguém gritou no Brasil! E o mais surpreendente é que esse grito não partiu de uma voz original, mas do escritor mais desprestigiado do “meio intelectual brasileiro” (meio intelectual brasileiro… isso existe?). Nada mais nada menos que Paulo Coelho. Vejam só: Paulo Coelho, um charlatão notório e brilhante, justo ele, esbarrou no grito do gênio. Como pode?
Alguma coisa evidentemente está fora de lugar, deslocada. Eu acho isso ótimo: sem deslocamento não se faz arte.
Mas quem diria. Eu, aqui na Feira de Buenos Aires, falando para a plateia de Borges, muito agradecido pelo convite. Boa noite!
E o mais improvável: quem diria… falando para a plateia de Borges e provocado por Paulo Coelho… como se não bastasse, tentarei chegar a George Orwell somando Borges a Paulo Coelho!
Vamos por partes.
Tudo começou quando Coelho disse, ou melhor, gritou que os setenta escritores brasileiros que foram à feira Frankfurt são uns bananas (qual a melhor tradução para o castelhano? Insignificantes?). Muitos deles devem estar aqui em Buenos Aires. Não tenho conhecimento, até agora, de nenhuma contradita por parte dos meus pares (uma deferência desnecessária chamá-los de “pares”; apesar de tudo, sou um homem educado). Ninguém respondeu a Coelho. De duas, uma. Ou são uns bananas mesmo. Ou pensam que são melhores que Coelho, e resolveram exercer o espírito de corpo.
Covardes. Oportunistas.
Tanto faz se fulano escreve a partir de um campo de concentração em Birkenau ou debaixo de uma jaqueira em Xerém, cercado por amigos, leitões e galinhas d’angola, tanto faz se se cobre de andrajos ou veste black-tie; a condição humana é a mesma para todos (até para os covardes), independentemente do endereço, do tempo e do assunto. O humano manifesta-se na alegria e na tristeza, na guerra e na paz, na miséria e na prosperidade e assim por diante.
O que eu quero dizer é o seguinte: se o artista for honesto consigo, ainda que seja um Paulo Coelho e não um George Orwell, a chance de se chegar perto da voz original que, como eu disse, compreende o grito e o estilo, a chance de a voz prevalecer – ainda que por aproximação – é muito grande.
E a chance de esses três ou quatro elementos (perdi a conta) se condensarem naquilo que Sócrates brindou com sicuta, naquilo que os místicos chamam de verdade, a chance de se alcançar a verdade… também é muito grande.
No caso de Orwell, a elegância e a objetividade de sua escrita (estilo) chegam a ser chocantes se comparados àquilo que se produz hoje em dia no Brasil, não porque nossos ensaístas e escritores sejam privados de sagacidade, ou porque não dominam a retórica e/ou abusam de uma erudição que geralmente, lá no Brasil, é mais a repetição enfadonha de Batman & Robin, digo, Walter Benjamin & Adorno, do que sabedoria propriamente dita.
O fato de escreverem mal e serem chatos não é o pior. A questão é que para se persuadir o leitor (espectador ou o zumbi na frente da internet), antes de tudo, urgem ou urgiam – em tese – honestidade intelectual e liberdade, artigos raros já no tempo de Orwell, e muito mais nos dias que seguem: tempos de editais, bolsas, conchavos, projetos mil e inclusão a qualquer custo.
Lá em São Paulo, por exemplo, foi instituído o “Prêmio Governador do Estado”, e existe uma categoria chamada “inclusão cultural”. São 520 mil reais em prêmios. E aí eu fico imaginando o governador Alckmin a espetar uma medalha no peito de um Pasolini do Jardim Estrela Dalva. Ou se faz inclusão, ou arte, ora!
Não sei se vale a pena citar nomes. Mas tem um rapper brasileiro que é exemplo notório do que eu falo. Querem o nome? Precisa? (…Emicida…) Uma fraude que circula de cara feia pelos saraus e coquetéis promovidos por uma classezinha média acuada e covarde, fazendo rimas toscas, junto com um punhado de outros picaretas (alguns deles estão passeando aqui na feira de Buenos Aires)… Pois bem, esse rapper foi indicado ao prêmio supracitado na categoria – pasmem!! – “inclusão cultural”. Não sei se ganhou ou não. O que eu sei é que ele é conhecido – também – por xingar autoridades e o público acuado que o afaga com prêmios milionários.
Taí a síntese do artista brasileiro. Quando não faz demagogia, ocupa-se em justificar seus “projetos e pesquisas”, está mais interessado em fazer assistência social e cumprir as regras do jogo (no caso do rapper, a regra é fazer cara feia pra plateia) do que em subverter a ordem; mais vale uma planilha bem feita do que um axioma zombeteiro que eventualmente possa destoar dos documentos exigidos pelos burocratas do departamento de seleção. A pergunta é: mesmo sem liberdade, mornos, vendidos prum capeta de quinta categoria, prosseguiremos… escrevendo livros?
Falando para quem? Quem é que, hoje, está interessado em liberdade e honestidade intelectual? Os 7,5 milhões de leitores do padre Marcelo? Conhecem Padre Marcelo Rossi? A propósito, fiz uma conta: são 7,5 milhões de pessoas que jamais vão ler George Orwell, jamais vão saber quem é Ernesto Sábato, Lugones, Borges, Cortázar, Reinaldo Arenas, e tantos outros. Verdadeiro rapto.
Não deixa de ser surpreendente, todavia, que Paulo Coelho, um autor que fala para o mesmo público do Padre Marcelo, tenha apontado a mediocridade que campeia em nosso meio literário – porém, não me surpreende que o grito dele tenha ecoado no deserto…onde mais poderia reverberar?
Confesso que ainda estou perplexo diante do grito de Coelho e da não reação-deslocamento que o fenômeno provocou (ao menos em mim), precisaria estudá-lo com mais profundidade. Preliminarmente, me pergunto: estaríamos diante do avesso do avesso de um espelho borgiano? Item para meus estudos: não reação-deslocamento.
Vivemos uma derrota fragorosa? Ou o imponderável estaria dando as caras? Bem, a derrota é incontestável. Uma coisa, porém, é admitir a derrota. Outra, completamente diferente, é resignar-se. Seria ótimo se o imponderável voltasse a se manifestar – eu o testemunhei nas manifestações do Rio de Janeiro em junho do ano passado, foi lindo ver o Palácio Tiradentes ardendo em chamas…
A propósito. Um pouco mais de Apocalipse para esquentar minha fala: “Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera fosse frio ou quente! Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca”.
Não acredito, salvo as exceções cada vez mais minguadas de praxe, em nossos artistas e escritores. Mas tenho esperança no grito e no vômito das ruas, e digo mais: torço para que o Brasil perca da Argentina no final da Copa do Mundo: torço para que imponderável saia de controle: quero acreditar que o marketing e a demagogia e os artistas-planilhas estão com os prazos de validades esgotados.
Mas ainda, infelizmente, enquanto as guilhotinas não entram em ação, são os homens de mercado travestidos de artistas que ditam as regras do jogo. Por enquanto, esqueçamos os incêndios, a subversão e as irrupções violentas que brotam da alma, vamos voltar à triste realidade dos homens mornos: o que se vende e o que se consome em todas as frentes – salvo as exceções de praxe – são oportunidades de negócios, tudo em nome da arte menos a arte.
Portanto, além da questão das misérias que somente fizeram se agravar nos últimos 80 anos, também a alma humana definhou, perdemos em liberdade e individualidade.
Orwell. Novamente ele. Uma de suas grandes qualidades foi jamais ter se omitido. O tempo provou que muitas vezes ele esteve certo e sempre esteve sozinho. Uma pena que tenha perdido a batalha porque os totalitarismos continuam aí, firmes e fortes, repaginados, cobrando juros de 20% ao mês e oferecendo a paz dos cemitérios para seus clientes e correntistas. Sabiam que um dos mais respeitados artistas brasileiros é banqueiro?
Creio que sufocar a possibilidade do grito individual é o pior dos crimes, creio que Orwell concordaria comigo….
Quem foram os últimos que gritaram no deserto brasileiro? Glauber Rocha, Tarso de Castro?
A consequência desse sufocamento é visível na “arte” e nos artistas mequetrefes que nos são impingidos goela abaixo. Visível na repetição (ou nas malditas “releituras”) do original que perdeu o viço e virou lixo reciclado; os técnicos, os mornos, os gerentes de marketing e os higienistas que tomaram os lugares dos artistas não me deixam mentir.
Ao contrário do que nos ensinam as políticas de correção (e de acordo com as previsões mais sombrias de Orwell), o coletivo – esse mesmo que desfilou aqui na feira de Buenos Aires com sua cara enfezada e rimas insossas – existe somente em função de excluir o indivíduo e sufocar a voz original. Vejam só o que o autor de Dentro da baleia escreveu em 1940 : “(…) quase com certeza estamos rumando para uma era de ditaduras totalitárias – uma era em que a liberdade de pensamento será o princípio de um pecado mortal e mais tarde uma abstração sem sentido”.
No alvo. O pensamento e a originalidade jazem mortos e enterrados; atingimos um patamar cultural que se localiza abaixo daquilo que Orwell chamaria de “abstração sem sentido”.
Alguns diriam que Eric Blair (Orwell) era um dedo-duro. Com certeza, dedo-duro. Além disso, sacana e desleal: elaborou uma lista de “criptocomunistas” para o governo britânico e dedurou Chaplin, Shaw e J.B. Priestley. Porém, jamais se omitiu diante de sua consciência. Vejam só o que ele escreveu em 1940: “(…) a literatura estará condenada não somente em países que conservam uma estrutura totalitária; mas qualquer escritor que adote a perspectiva totalitária, que encontre desculpas para a perseguição e a falsificação da realidade, se destrói como escritor. Nenhuma diatribe contra o ‘individualismo’ e a ‘torre de marfim’, nenhum chavão religioso do tipo ‘a verdadeira individualidade só é alcançada através da identificação com a comunidade’, pode esconder o fato de que uma mente comprada é uma mente podre (…) em algum momento do futuro, se a mente humana se transformar em algo totalmente distinto do que é agora, talvez aprendamos a separar a criação literária da honestidade intelectual (…) A imaginação não se reproduz em cativeiro”.
Não trair a si mesmo é um dos pontos básicos para registrar algo que valha a pena ser lido, refletido e apreciado depois de cem anos. Com certeza, esse é o recado de Orwell. Infelizmente, ele errava pouco e entendia como nenhum outro de previsibilidades. Tava na cara que o gado acabaria se adaptando ao cativeiro, ou “coletivo” – chamem como quiser.
A imaginação, eu acrescentaria, não se reproduz em gaiolas de ouro nem em cooperativas de periferia. Impressionante, esse Orwell: apontando o dedo para a omissão dos intelectuais de sua época em face do massacre que a extinta URSS promovia contra jornalistas e escritores, ele conseguiu se projetar no tempo e vislumbrou as torres do Edifício Abril, as feiras literárias, os saraus esotéricos da nossa querida e fofa Vila Madalena e os puxadinhos “irados” do Capão Pecado, incluindo todos no mesmo balaio-cativeiro.
Que o imponderável saia de controle! Buenas noches, amigos. Muchas gracias!