Gabriele Cornelli*
No período de festas acabo sempre por tirar da estante os livros originais, por assim dizer, que deram origem às nossas tradições. Ao reler laicamente as palavras dos cristãos primitivos dois milênios depois, se dispõem em minha mente de forma desorganizada fragmentos de imagens antigas de grutas, pastores, animais, um casal em fuga, menino, magos. Um detalhe dessas histórias, contadas no Evangelho de Lucas, me chamou a atenção neste ano: é o momento em que Maria descobre sua gravidez pelas palavras do anjo.
O leitor atento da literatura cristã primitiva notará que Lucas é o único evangelista a mostrar o ponto de vista das mulheres do presépio. Enquanto Marcos e João não se interessam por contar das tradições de nascimento e infância de Jesus, Mateus se preocupa exclusivamente com a surpresa de José ao encontrar a esposa dele grávida e sua decisão de pedir secretamente o divórcio. Um olhar marcadamente masculino, diria, quando não burocrático e machista, desfeito somente graças à anunciação da gravidez divina e do especial lugar que estaria reservado nessa história para a paternidade de José. A reação dele também é burocrática: obedece, nada se diz dos sentimentos dele. Fez o que tinha de fazer. Sempre me perguntei se este dever-sem-sentimentos não seja algo que define arquetipicamente a paternidade desde então.
Ponto de vista feminino
Lucas, portanto, é o único que se preocupa com as duas mulheres, Isabel e Maria, e com o que elas sentem e pensam a respeito de suas gravidezes especiais. Assim, ao ouvir a notícia de que carrega um filho no ventre, a reação de Maria é de extrema preocupação, ao contrário da de José. O tempo verbal grego do verbo, no aoristo, indica esta imediata reação de perturbação profunda. A isso se segue um período relativamente longo (aqui o verbo está no imperfeito, indicando exatamente esta continuidade da ação – agradeço Frederico Lourenço por me apontar esta subtileza do tempo) de dúvida e de interrogação sobre o sentido do que está acontecendo com ela: uma gravidez inesperada!
Sabemos como acaba a história deste encontro, pois é como todas as histórias antigas sobre o encontro de mulheres e deuses. Maria se declara serva, escrava de deus, reconhecendo sua impotência, portanto, seu desempoderamento – como diríamos hoje – com relação a esta intervenção divina que faz de seu ventre um meio de reprodução alheio à sua vontade. Ainda assim, suas últimas palavras a Gabriel podem ser lidas como uma forma última de consentimento, apesar de tudo: “aconteça-me segundo a tua palavra”, isto é, está-bem, assim-seja, tens-meu-consentimento-à-gravidez.
PublicidadeQue seja feita a vontade dela
Gosto de pensar que neste desfecho do diálogo dramático entre uma mulher e deus, nas últimas palavras de Maria, residem toda a beleza e a dor de uma mulher que – ontem como hoje – deve decidir se leva adiante uma gravidez indesejada e que a colheu de surpresa, por vários motivos, nem todos necessariamente divinos. Entre as páginas mais belas da literatura e da iconografia de todos os tempos, a anunciação de Maria poderia ser mais facilmente renomeada como a escolha de Maria. O texto evangélico mostra claramente que foi uma escolha difícil, perturbada, cheia de dúvidas e de protestos, como provavelmente somente uma mulher que tenha vivido uma situação semelhante pode compreender.
Maria está longe de ser passiva com relação ao que acontece no interior de seu útero. Ainda que – no caso da gravidez messiânica dela – pareceria quase impossível que fosse resistir ao destino marcado para ela, a de ser meio de salvação da humanidade, Maria fica em pé na frente de deus: sente, pensa e consente com a liberdade que lhe resta frente a tudo isso. A escolha poderia ter sido outra, para Maria e para todas as mulheres na situação dela. Que assim seja, portanto, e que seja feita a vontade dela.
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