Bajonas Teixeira de Brito Junior *
A história da classe média no Brasil está relacionada à obediência aos comandos da mídia, à adesão às imagens, modas e estereótipos que são recomendados para ela. Quem quiser compreender a classe média brasileira tem que atentar a esse fato e verificar as identidades que a mídia lhe atribui. Programas como Os normais e A grande família, por exemplo, ao mimarem a classe média, dando a ela até um certo glamour, fizeram crescer suas pretensões sociais.
Depois vieram os programas de stand-up, o Pânico e o CQC, todos promovendo uma visão de classe média branca (bem explícita na bancada uniformizada de terno e gravata do CQC), afoita nas piadas de negros e outras atitudes situadas como “politicamente incorretas”. A desinibição da classe média, para quem não se lembra, começou com o sucesso do hit Vai tomar no cu, em que ela pôde se expressar livremente pela primeira vez (“Música que liberta a sua alma !!!!”, como se lê em um dos vídeos postados). O vídeo original teve mais de 6,5 milhões de acessos.
O Vai tomar no cu foi o primeiro viral da internet brasileira, e certamente fascinou a classe média por deixar a sensação que um ato proibido, ou moralmente impróprio, poderia ser cometido sem acarretar punição alguma. Ao contrário, podia até ser aplaudido. O desejo da classe média de se identificar às elites, cujo privilégio fundamental no Brasil é o da impunidade, alcançava assim alguma realização. Num país em que “liberdade é passar a mão na bunda do guarda”, “libertar-se” é partilhar um pouco do privilégio sagrado das elites: o de delinquir impunemente.
O barateamento da produção de vídeos e a expansão do YouTube que concederam à classe média essa chance de mostrar-se por si mesma, de fazer sua própria mídia, embora num nível bastante subordinado à grande mídia (O Porta dos Fundos e muitas outras produtoras surgiram dessa conjuntura, e desse expediente, de usar o humor como forma de cometer imaginariamente um desmando impossível de realizar na prática).
Caso raro em que esse cálculo deu errado, foi justamente quando se quis abusar das elites, no episódio em que Rafinha Bastos foi banido do CQC. Aí ficou claro que as armas da classe média só podiam ser apontadas para baixo.
Seria injusto e incorreto, porém, esquecer que durante esse período a classe média do país se dividiu em um segmento mais democrático, portador de uma identidade própria, que nutre um ódio consistente contra o privilégio e gostaria de ver o país democratizado, e em outro ramo mais sedento de privilégios, que se identifica no plano imaginário com as elites e seus poderes.
PublicidadeAs últimas eleições deixaram bem claro o abismo entre esses dois grupos da classe média: um que foi às ruas pedir o golpe militar e bater palmas para a PM, e outro que procurou dar as eleições o aspecto de uma luta pela representação democrática, pela realização de um programa de direitos e redução de disparidades sociais. Logo após as eleições, essas duas vertentes foram traídas, cada qual pelo segmento político ao qual buscou aliar-se, e voltaram a uma certa apatia. Aqui, contudo, vamos nos deter apenas sobre a classe média da conspiração golpista.
Por paradoxal que pareça, essa classe média deve muito ao PT. Primeiro por Lula, ao propagandear a pequena melhora dos miseráveis com os programas sociais do seu governo, ter apresentado isso como uma passagem ao status de classe média. No ritmo do exagero comum no Brasil, indivíduos que estariam muito felizes se tivessem alcançado a linha da pobreza, foram de repente catapultados à condição inverossímil de ”classe média”.
Dessa falsificação dos fatos, ficou, porém, a sensação de que tornar-se classe média seria um ideal social supremo. E, claro, deu lustre aos brios da classe média. Isso, junto com outros estímulos menores que, vamos ver, tiveram como resultado inchar desmesuradamente a bola da classe média. O resultado foi o show de bizarrices, a proliferação de ódios nas redes sociais e as manifestações clamando por golpe e ditadura militar.
Mas não foi só com palavras que o PT e o governo Dilma estimularam a petulância da classe média, foi também com atos. Basta ver a renovação da frota de veículos conquistada em 2013/14 com a redução do IPI. Tudo isso ajudou a levantar a crista da classe média, a inflar sua coragem. Querendo mais, e já bastante abusada, a ingrata cuspiu no prato em que comeu com um descaro de megera de samba canção.
Só Augusto dos Anjos a explicaria: “Apedreja essa mão vil que te afaga, / Escarra nessa boca que te beija!”
De uns anos para cá, a classe média começou a realizar, através de gestos involuntários e quase inconscientes, certos ritos em que vai se aglutinando numa identidade coletiva. Não se trata de um projeto articulado, definido e consciente, mas, sim, de movimentos um tanto cegos, que, contudo, satisfazem a consecução de certos desejos. Antes disso, todos os seus movimentos, ou melhor, seus espasmos, eram realizados respondendo a uma convocação das elites. A classe média era convocada a sair as ruas ou a ficar em casa nos momentos políticos críticos, por exemplo. Foi assim que a Rede Globo convocou, pela mídia, o movimento dos caras-pintadas.
Adolescentes, quase sem ideia do que estavam fazendo, com o rosto oculto sob espessa camada de tinta, despersonalizados, foram para rua em lugar de seus pais, que ficaram em casa assistindo à Globo. Esse papel passivo foi típico da classe média brasileira em todo o século XX. Ou seja, quando ela agia, agia como intermediária das forças políticas dominantes.
No caso de Collor, foram dois níveis de intermediação: a Globo usou a classe média como sua intermediária, e os pais de classe média usaram os filhos. Estes, por usa vez, saíram às ruas, mas não como eles mesmos, com a cara e a coragem, mas com as caras pintadas.
Dessa lógica das ações intermediadas (que é o que explica os testas de ferro, os paus mandados, os jagunços, os laranjas, os homens de confiança, etc.), apresentamos uma discussão em nosso livro Lógica do disparate.
Foi quase como um grito de rebeldia contra esse papel de figurante de terceira classe, que surgiu o movimento “Cala a boca, Galvão”. A classe média externava seu cansaço com Galvão Bueno e aspirava vê-lo aposentado pela Globo. Na verdade, era um ato de rebeldia contra a Globo, a dona do passe de Galvão, seu principal locutor esportivo. Mas, agindo inconscientemente, a classe média nunca suspeitou disso, não chegando a ter consciência de seu verdadeiro objetivo. O resultado foi que Galvão ficou e tudo transcorreu como se a classe média nem existisse, mostrando a insignificância do seu clamor para a poderosa Globo.
Aí veio um grito de revolta destinado a fazer história: “Ei, Galvão, vai tomar no cu”. (O vídeo desse episódio no You Tube chegou a quase sete milhões de acessos) É bastante irônico o fato de que, enquanto é xingado pelos torcedores, Galvão leia uma matéria que é a expressão mesma do poder das elites sobre a vida pública brasileira. Trata-se de uma medida provisória destinada a sanar as dívidas dos clubes de futebol com o governo federal.
Recordando esses fatos, vale dar uma espiada na pré-história dessa classe média nos anos 90. Nessa época, um pouco mais de uma década antes dos episódios que acabamos de narrar, dois fatos foram decisivos para que a classe média desbaratinasse de vez. Um deles foi a voga das novelas de cavalgadura nos anos 90 que deu origem à febre equina. Como sempre, tudo começou com a mídia. Uma rápida busca no Google nos mostra a voga na época das novelas rurais. Só para citar as de maior sucesso, tivemos Pantanal em 1990, na Manchete, A história de Ana Raio e Zé Trovão, também na Manchete (1991), e o Rei do gado, Globo (1996).
Bem provavelmente, houve várias outras nessa época, período também do nascimento da moderna dupla caipira no país (ciclo de mais um pesadelo interminável). Não foi coincidência, portanto, que o surto equino tenha se instalado ali pela metade dos anos 90.
Em resumo foi o seguinte: fascinadas pelo que viam na TV, inúmeras famílias de classe média possuidoras de um sítio, uma chácara, ou até mesmo uma casa de praia com quintal, adquiriram pangarés a preços módicos e passaram a fazer pose de fazendeiros.
Muitos cavalos ficavam estacionados nos seus quintais durante a semana, aos cuidados de descuidados caseiros. Lembro, o que me parece o cúmulo de toda essa bizarrice, que um energúmeno na minha vizinhança ― na época, eu havia mudado para um balneário em busca de paz ― deixava o cavalo dentro de uma garagem com porta gradeada. Só a intervenção da associação de moradores conseguiu remover o cavalo dali. As praias bucólicas e isoladas passaram, de repente, a abrigar certames e páreos nos finais de semana e feriados, com graves riscos para as crianças na areia. Como é sabido, sempre que pode, a classe média abomina todas as regras e escrúpulos.
A situação piora ainda mais quando o dono de um terreno de 450 m² delira que é um latifundiário, e que o magro rocinante estacionado na garagem é um puro sangue árabe. E se sente o rei do gado, embora tendo apenas 3 m² para estacionar a montaria. A coisa chegou aos extremos trágicos quando os caseiros imitando os patrões começaram a adquirir, também eles, seus animais. Como não podia deixar de ser, nesse momento, quando até caseiro já tinha cavalo, a classe média começou a sentir vergonha do antigo hobby e deixou os sonhos hípicos de lado.
Para não poupar nenhuma aberração, nessa época as cavalgadas tinham por trilha sonora o Bolero de Ravel. Assim como, nos últimos anos, os “cerimoniais”, inspirados no Itamaraty, ditam o tom, ou melhor, o bom tom tresloucado da classe média “grã fina”, naquele momento o Bolero de Ravel dominou quase completamente a ambiência sonora. Foi o período clássico da classe média rastaquera. A largada para essa mania erudita aconteceu no Aterro do Flamengo, com o falecido Jorge Donn dançando, em 1989 para mais de 100 mil pessoas uma coreografia de Béjar. Tudo a ver, porque o Brasil comemorava o bicentenário de revolução francesa (!). O bolero foi o grande pesadelo sonoro dos anos 90.
Doida para parecer refinada, ainda hipnotizada com a personagem Odette Reutmann, sempre que o assunto era música, a classe média se pronunciava: “Eu adoro o Bolero de Ravel”. E acrescentava com certa deselegância discreta: “O Bolero de Ravel e o hipismo”.
Falando ainda dos fenômenos ligados à mania de grandeza da classe média nessa época remota, entre os anos 80 e 90, duas modas interessantes, das mais hilárias aliás, foram a mania das antiguidades e a obsessão dos quadros tortos na parede. Em ambos os casos, se tratava de dar-se um ar de aristocrático e esnobe, frequentando antiquários e leilões. Talvez esse desatino tenha se restringido ao Rio de Janeiro, mas por ser muito emblemático merece ser recordado.
Para satisfazer a cobiça da classe média por “antiguidades”, esse público que nem tinha dinheiro nem conhecia arte, surgiu um mercado de quinquilharias sem valor. Era cansativo ver cachimbos de cerâmica, pianos faltando teclas, surradas escarradeiras e penicos esmaltados, fruteiras de estanho vendidas como prata, telas pintadas a óleo sem valor nenhum, móveis ridículos, especialmente cristaleiras para a prataria da casa, bengalas fajutas, e outras bugigangas inigualáveis.
Para adquirir seu “acervo” o “colecionador” de classe média, geralmente o pai de família com pendores artísticos, e flanêur nas horas vagas, percorria os chinfrins antiquários que se espalharam na cidade do Rio de Janeiro.
O toque final vinha com as telas, geralmente representando um homem em trajes de outrora, como os antigos retratos da oligarquia, que eram postos na sala como retrato de um antepassado ilustre. Para dar um quê de blasé, de descuido desculpável de um herdeiro desatento, o quadro era cuidadosamente entortado um pouquinho na parede.
As empregadas domésticas, muito espertas e matreiras, logo percebendo a malandragem, acertavam o quadro na parede só para azucrinar os patrões e as patroas, que corriam ansiosos para corrigir o mínimo desentortamento. Era uma luta de classes sem fim nas salas de estar. Essa ridicularia era o passatempo da classe média, ao menos da carioca, no período em que o Brasil estava saindo da ditadura.
Além da estética, a história criminal também ensina um pouco sobre o comportamento da nossa classe média. No que diz respeito ao núcleo essencial da sociedade brasileira, que é o direito ao privilégio, isto é, o direito à impunidade, houve vários momentos de surto social em que a classe média almejou entrar em cena como ator independente.
Por exemplo, na época da juventude transviada em Copacabana do fim dos anos 50 e início dos 60. Boa parte dos transviados, tanto em Copa, como se dizia na época, quanto na suburbana Tijuca, eram garotos da classe média. Mas a eles coube apenas um papel coadjuvante, se limitavam as garrafadas nas brigas, aos atropelamentos de pobres com lambretas, e um ou outro carro puxado.
Os grandes crimes, como, por exemplo, o caso Aída Cury, permaneceram assunto dos delinquentes de elite, mais parrudos, de costas mais quentes. Assim continuou por muitos anos. Além do caso Aída Cury, houve o caso Aracely, o caso Claudia Lessin, o caso Ana Lídia, em Brasília.
Sobre esse último, é sabido que um dos principais suspeitos era o filho do então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, o que contribuiu em muito para a total impunidade da trupe de facínoras. Na Justiça não se toca.
Enfim, nestes casos todos a classe média não teve chance de participar e gozar da impunidade, sentindo o gostinho do prestígio social, porque eram crimes típicos de uma esfera mais alta de poder. Deles ela permaneceu excluída. Eram praticados pelos grupos aos quais ela estava submetida. Seus protagonistas eram os filhos das elites. Na verdade, os únicos privilégios que a classe média alcançou nessa etapa, e que já eram bastante significativos para suas pretensões, foram a impunidade no uso de drogas e nos crimes de trânsito. Em muitas décadas, vi raríssimas prisões por uso de drogas, e mesmo essas rapidamente afrouxadas pela conjunção de gorjeta paterna, advogados, algum conhecido influente, etc. Já nos atropelamentos e mortes no trânsito, nunca vi ninguém ser punido.
Mas o meu sentimento é de que a época de ouro da classe média está começando agora, bem recentemente, e seus promotores são sobretudo a internet e as redes sociais. Em especial, a possibilidade de se resguardar no anonimato das redes (ou seja, a possibilidade de se dissimular, paixão da qual sempre foi devota) deu a ela um terreno novo e inexplorado. Incapaz, pelo seu limitado poder social, de cometer os grandes crimes sem ser punida, a classe média vem conseguindo no varejo, através dos crimes de ódio, realizar sua íntima fantasia de poder, que é o desejo de possuir, ela também, inferiores e, além disso, exercer o gozo arbitrário sobre eles (por exemplo, dizer a um negro quantas bananas ele quer para acabar uma discussão).
Disso aufere prazer com a ilusão de se igualar aos poderosos, ou seja, de não só delinquir, mas de o fazer estando a salvo de punições.
Tendo sempre sido inferior às elites endinheiradas, a classe média almeja ela também ter os seus inferiores e subordinados, e fazer deles gato e sapato. Sua massiva atuação na disseminação de crimes de ódio através das redes sociais, em que pode desempenhar um papel submidiático, editando ela mesma os seus preconceitos, é um imenso passo para adiante. Contudo, isso está longe de eliminar a fragilidade congênita da classe média.
Só a quase inacreditável miséria mental dos dirigentes brasileiros, em especial dos responsáveis pela vida jurídica do país, permite à classe média continuar acreditando na sua pose. E, o que é pior, gozando de uma certa onipotência para realizar suas fantasias.
* Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, autor do ensaio, traduzido pelo filósofo francês Michael Soubbotnik, Aspects historiques et logiques de la classification raciale au Brésil (Cf. na Internet), e do livro Lógica do disparate.
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