A tragédia da madrugada de terça-feira, 1º de maio, em São Paulo, comoveu o país e trouxe à tona o debate sobre e o direito à moradia e as ocupações em todo o país.
A solidariedade com as vítimas — uma morte confirmada e quatro pessoas desaparecidas, sendo duas crianças — não impediu o radicalismo de tomar parte no debate. Ao invés de ajudar, rezar, orar ou simplesmente torcer para que os desaparecidos fossem encontrados com vida, algumas lideranças políticas estavam mais preocupadas em culpar pela tragédia os moradores e os movimentos de luta pela moradia, o que demonstra o mais completo desconhecimento, preconceito e falta de sensibilidade com o sofrimento de nossa população.
Durante minha graduação no curso de Direito, acompanhei de perto o trabalho dos movimentos de moradia do centro de São Paulo. Poucas vezes vi situações tão degradantes como aquelas dos cortiços onde famílias inteiras se espremiam dentro de quartos alugados nos inúmeros casarões abandonados no centro da cidade.
No pouco que restava de quintal daqueles casarões, vi dezenas de crianças brincando em meio ao lixo, de onde seus pais esperavam retirar o material reciclável para obter alguma renda, e em meio à água que corria do único tanque, utilizado tanto para lavar roupas como para preparar a comida. Famílias inteiras se acomodavam espremidas em meio a colchões e beliches naqueles quartos sem ventilação, tomados pelo cheiro de mofo e pelo calor insuportável. Ratos e baratas colocavam em risco a saúde de todos, especialmente das crianças.
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Soma-se a esse contexto a tensão constante com o risco de reintegração. Perdi a conta de quantas vezes saí de casa as pressas para acompanhar famílias que estavam sendo despejadas de cortiços sem notificação prévia, sem nada. Lembro-me do quanto penávamos para conseguir alguns minutos a mais, apenas para que aquelas famílias pudessem retirar do imóvel os poucos bens que conseguiram juntar.
Antes mesmo de as famílias conseguirem sair do imóvel, representantes do proprietário já começavam a derrubar teto e paredes ou a fechar portas e janelas com cimento e tijolos, de maneira a assegurar que aquele imóvel não voltaria a cumprir qualquer função social por um bom tempo.
PublicidadePassei minha infância e adolescência num terreno ocupado. Tive a experiência de viver num barraco de madeirite, brinquei em meio ao esgoto que corria a céu aberto, me escondia embaixo da mesa, com medo da chuva e do vento forte que muitas vezes quase levou nosso telhado de zinco. Convivi com o risco de reintegração de posse nos rondando o tempo todo.
Por tudo isso, afirmo que ninguém escolhe morar numa ocupação. Ter sua casa própria e não precisar se preocupar com o aluguel, com o oficial de justiça ou com a Agência de Fiscalização do Distrito Federal (Agefis) batendo à sua porta ainda é um dos maiores sonhos de toda família de baixa renda.E a concretização desse sonho, historicamente, somente é alcançada por meio da organização promovida pelos movimentos de moradia. Programas como o Minha Casa Minha Vida e toda a legislação de regularização fundiária de interesse social jamais teriam sido criados se não fosse a mobilização e a reivindicação desses movimentos.
A tragédia de São Paulo pode ser uma ótima oportunidade para refletirmos sobre a situação das mais de sete milhões de famílias sem moradia em nosso país e também daquelas que há décadas esperam a regularização de suas casas. A vida dessas pessoas deve piorar muito com o avanço da atual crise econômica e com a mais absoluta falta de sensibilidade do governo federal e da maioria dos governos locais com o seu sofrimento.
Conhecer uma ocupação, ver de perto os desafios e dificuldades pelas quais passam os moradores que nela convivem é, sem dúvida alguma, um passo importante para afastar o preconceito e compreender por que nossa Constituição consagrou em seu texto o princípio de que a propriedade deve cumprir sua função social.
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