O motorista Wilson de Souza Filho, de 22 anos, chegou em casa, no Residencial Ilza Terezinha, em Cuiabá, por volta das 22h. Chegava de uma viagem a Jaciara (MT), distante cerca de 140 quilômetros, onde tinha buscado uma carga de água num caminhão Volkswagen amarelo. Havia dirigido por duas horas e meia à noite, mas ainda teve que descarregar o caminhão junto com o pessoal da distribuidora. Já em casa, jantou, conversou um pouquinho com a família e foi dormir. Ele sabia que tinha de buscar outra carga para uma distribuidora de água na Chapada dos Guimarães, distante cerca de 70 quilômetros, na manhã seguinte. Teria que estar de volta para descarregar até o meio dia.
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Convidou a mulher, Aryane Rabelo, de 23 anos, para acompanhá-lo na viagem na madrugada. Ela topou na hora. Ele também convidou a cunhada, Lucione, e o filho mais velho, de quatro anos, mas eles não foram. A cunhada ficou cuidando do menino. Acordaram por volta das 3h, após poucas horas de sono, e partiram em meia hora. Ariane teve que levar a bebê, Samira, de apenas 47 dias, que ainda mamava no peito. Era a sua primeira viagem com os pais.
Deixaram o bairro de periferia onde moravam, com ruelas estreitas, sem pavimentação, e seguiram em uma viagem tranquila, com a estrada praticamente vazia. O caminhão ia carregado apenas de vasilhames. Wilson conhecia o caminho porque era a sua segunda viagem para esse local, a primeira de Aryane. Chegaram rapidamente às escarpas que formam a Chapada dos Guimarães – principal ponto turístico do estado, com dezenas de nascentes, centenas de cachoeiras, sítios arqueológicos, cavernas, lagoas e trilhas na vegetação típica de cerrado. A cachoeira “Véu de Noiva”, com 86 metros de queda livre, é a principal atração. O Parque Nacional tem 3,3 mil Km². Na altitude de 800 metros, o clima é frio à noite, alcançando temperaturas negativas em alguns anos.
A escuridão da noite impediu que os dois avistassem a coloração dourada das bordas escarpadas da Chapada, voltadas para a Depressão Cuiabana. Eles contornaram as bordas percorrendo a rodovia Emanuel Pinheiro, a MT-251, em bom estado de conservação, mas com muitas curvas e declives. Depois, começaram a galgar as escarpas para chegar ao topo do chapadão. O último trecho da subida foi feito em velocidade moderada. Uma curva bem aberta à direita e, no final, outra bastante radical à esquerda. Era o km 57 da rodovia. Eles estavam no “Portão do Inferno” (veja na galeria abaixo) – admirado pela bela paisagem que se avista do mirante e temido pelos inúmeros acidentes, desovas de corpos e suicídios que ali ocorreram.
Em queda livre
Ninguém sabe exatamente o que aconteceu naquela madrugada, mas Wilson não fez a curva. O caminhão saiu da pista, numa velocidade estimada de 45 km/h, primeiro fazendo atrito o guard rail metálico, provocando o seu deslocamento. Em seguida, a lateral direita do veículo ultrapassou o guard rail e trafegou sobre ele. A outra lateral quebrou dois metros na mureta de concreto do pontilhão, rompendo a última resistência. O caminhão mergulhou no vazio, na completa escuridão, para uma queda livre de 72 metros – o equivalente a um prédio de 25 andares. Eram 4h40 da madrugada. Na queda, os componentes do veículo ficaram espalhados. A cabine acomodou-se embaixo de árvores, no fundo do precipício.
A informação chegou em poucos minutos ao plantão da Delegacia de Polícia Civil da cidade Chapada dos Guimarães, poucos quilômetros adiante. Uma equipe foi ao local e confirmou a denúncia que chegara pelo serviço de telefone de emergência. Foi acionado, então, o grupo de resgate, formado por policiais civis e militares e pelo Corpo de Bombeiros de Cuiabá. O trabalho foi liderado pelo policial civil José Siplaki Netto – com experiência de 11 resgates no local nos últimos 20 anos, sem jamais encontrar alguém vivo. Ele relata a operação:
– Foi um trabalho muito difícil, custoso. Levamos quase seis horas de resgate. Fizemos os primeiros socorros ainda no fundo das escarpas. Ali é difícil descer com aeronave, a vegetação é muito densa. Descer de rapel também é muito difícil. Tem que descer por uma única via de acesso lateral. A vítima sobe no rapel. Tem que soltar cabos solteiros, juntar homens e subir na bruta, na valentia mesmo, um trabalho muito exaustivo.
O grupo desceu por uma picada lateral, aberta a facão, a partir de uma lanchonete abandonada ao nível da estrada. Chegaram lá embaixo após 40 minutos abrindo picada. Quando alcançaram os destroços, a primeira tarefa foi retirar o motorista das ferragens. Tiveram que cortar parte da fuselagem da cabine do veículo. Rapidamente concluíram que estava morto. Logo ao lado, afastada do caminhão, estava a bebê Samira, também morta. Pensaram que eram os únicos ocupantes do veículo, mas tiveram uma surpresa.
– Percebemos que, entre as ferragens, bem encolhida, estava a mãe da criança. Na hora de cortar as ferragens, estilhaços da serra fizeram com que ela se mexesse. Deu um assopro de vida. Lá mesmo fizemos os primeiros socorros. Ela teve fratura exposta no fêmur, na clavícula, e nos braços, mas não em regiões letais, como no tórax ou no crânio. Subimos ela na maca, porque o helicóptero não conseguiu chegar.
Em coma
Aryane foi levada imediatamente para um pronto-socorro. Ficou 14 dias em coma. Quando acordou, não lembrava do acidente. Enquanto esteve no hospital, não lembrava nem mesmo que tinha uma filha. Contaram do acidente e disseram que o marido estava num hospital particular, pago pela empresa.
– A gente dava graças a Deus que ela não lembrava – conta a mãe, que pediu para não ser identificada.
Mas perguntava pelo filho de quatro anos nos 47 dias em que esteve internada.
– O meu filho, o meu filho! Tenho que ficar boa pra cuidar do meu filho.
Ela passou por cirurgias no joelho e colocou duas placas de metal e quatro parafusos na coluna para recuperar as vértebras quebradas.
– Se não fosse pelo filho, ela não tinha se recuperado. Ela tinha forças para se recuperar porque tinha um filhinho esperando por ela e para cuidar do esposo também – conta a mãe.
No último dia no hospital, os médicos se reuniram e contaram toda a verdade, inclusive sobre a morte do marido e do bebê. Ela chorou muito, mas depois foi recuperando as forças.
– Ela sofreu muito, perdeu a vontade de viver. Ficou um tempo em cadeira de roda. Só não perdeu totalmente por causa do filhinho. Ela sempre foi religiosa, desde criança. Mas, quando chega o dia 4 de junho, é sofrimento – relata a mãe.
O Governo do Mato Grosso ressalta que muitos dos veículos que caíram no “Portão do Inferno” são casos de “desova”. Mas informa que tem um projeto para a construção de uma nova rodovia ligando Cuiabá ao município de Chapada dos Guimarães, a MT-030, com 53 quilômetros de extensão. Mas, assim como acontece em outras regiões do estado, a nova rodovia ainda está em fase de projeto.
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