Antonio Marcelo Jackson *
Se para um segmento das análises e da sociedade brasileira a cassação do deputado federal Eduardo Cunha pouco tempo após o impeachment de Dilma Rousseff indica que o país talvez esteja se aprumando na direção correta, para outros, dentre os quais me incluo, quem sabe o cenário não seja assim tão promissor. E quando falamos em cenário, devemos refletir sobre os diversos itens que o compõem.
O primeiro deles diz respeito ao assim denominado “presidencialismo de coalizão”, onde o papel a ser desempenhado pelo Legislativo – notadamente a Câmara de Deputados – é muito superior às condições habituais do presidencialismo clássico e, por outro lado, assemelha-se enormemente ao parlamentarismo. O problema aqui é termos o poder de decisão nas mãos de deputados sem os freios e contrapesos que o regime parlamentar possui (um presidente da República que administra o país na ausência temporária do primeiro-ministro; a possibilidade constitucional de novas eleições a cada derrubada do Parlamento etc.).
Em seguida, a situação se complica um pouco mais, visto que, esmagadoramente os regimes parlamentaristas têm no voto distrital seu escopo de funcionamento, enquanto que em nosso sistema o voto é proporcional. No primeiro caso, o território é dividido em distritos eleitorais que elegem um representante que, ao final, escolherá o primeiro-ministro – há casos de presidencialismo com voto distrital como no exemplo norte-americano -, enquanto que no modelo brasileiro tem-se o “número cabalístico” de 513 deputados federais – com o perdão do uso da expressão – divididos proporcionalmente pelos estados e pelo Distrito Federal, com a eleição de 8 a 70 representantes. No caso do Brasil um deputado federal, em tese, é eleito pelo estado e não necessariamente por uma região ou distrito (ainda que possa se verificar aonde seus eleitores se concentram mais) ou, em outras palavras, seu vínculo não é com a sociedade, mas sim, com o estado ou distrito federal e com o número de candidatos possível de ser eleito.
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Reunindo esses dois primeiros itens um problema já se vislumbra: muito mais do que se preocupar com as demandas sociais, um candidato deve se preocupar com o número de votos necessários naquela unidade da federação para ser eleito.
Seguindo nosso raciocínio, chegamos ao terceiro item, a saber, a coligação partidária e a migração de votos de um candidato para outro. Em um modelo no qual o voto é proporcional e com um presidencialismo de coalizão, o mais interessante é termos um número limitado de partidos e a impossibilidade de coligações entre eles. Isto se dá em virtude de se coibir uma anomalia no sistema em que a difusão de interesses dos grupos políticos, somada à inquestionável ambição de se eleger o maior número de representantes, torne a coligação e o voto proporcional um instrumento para se ludibriar a ideia de representação. Nesse caso, o exemplo brasileiro salta aos olhos: nas eleições gerais de 2006 apenas 32 dos 513 deputados federais foram eleitos com o próprio voto e em 2010 e 2014 somente 35 dos mesmos 513 conseguiram a façanha.
PublicidadeSe levarmos a sério a eleição e o princípio de que ela deve resultar em um grupo de pessoas que represente o meio social ou algo similar, o sistema eleitoral brasileiro produz algo por completo alienígena: em último caso, a maior parte dos deputados federais representa única e exclusivamente o funcionamento do próprio sistema e não seus eleitores.
Se tal conclusão for crível chegamos a um cenário no mínimo preocupante por alguns motivos. Primeiro, porque basta que um pequeno grupo de parlamentares tenha o controle do partido político e, mais até, da coligação partidária e da forma como serão dispostas as candidaturas nessa mesma coligação para que garanta sua eleição sem a necessidade de obter o número mínimo de votos em seu estado ou no Distrito Federal.
Segundo, porque essa anomalia somente pode ser corrigida democraticamente por esses mesmos deputados federais, ou seja, em uma ingênua pergunta podemos pensar se os maiores beneficiários de um sistema estão interessados em modifica-lo. Terceiro, porque, se estamos em um presidencialismo de coalizão, então estas senhoras e senhores que representam exclusivamente o modelo que os criou possuem a capacidade de influenciar enormemente ou mesmo ditar os rumos da Presidência da República, ou seja, na melhor das hipóteses, os destinos do país seriam traçados por um grupo de pessoas descolado da sociedade e movido exclusivamente por seus interesses privados.
Nesse sentido, e excepcionalmente, os membros do grupo podem “sacrificar” um dos seus para se evitar o debate sobre o próprio sistema e permitir a autorreprodução – o que justificaria o expressivo número de filhos e parentes de parlamentares que se apresentam como candidatos a cada novo pleito – ao mesmo tempo em que talvez isso explique as imagens que a assistimos na noite de 12 de setembro de 2016 na cassação de Eduardo Cunha.
De qualquer modo não me sinto confortável com o cenário que vislumbro. Vemos um “Leviatã” às avessas em seu nascedouro? Uma “inteligência coletiva” se forma na Câmara dos Deputados?
Não possuo “bola de cristal”; mas temo em demasia aquilo que se desnuda perante meus olhos.
* Doutor em Ciência Política. Professor do Departamento de Educação e Tecnologias da Universidade Federal de Ouro Preto.
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