Os escândalos sucessivos dos últimos anos revelam a dimensão da captura do espaço público nacional pelos interesses privados. Esses se movem desavergonhadamente, confiados no vale tudo que mancha a reputação dos brasileiros ao redor do mundo. Esquecem completamente que os princípios elementares de Estado diferem, em termos ontogenéticos, dos que regem os privados interesses, com seus vínculos e consentimentos calculistas, orientados tão somente para o lucro e dirigidos por uma filosofia comercialesca.
Esses pretensos iluminados confundem liderança com autoridade formal, pelo que não têm cerimônia para convocar as tropas para a rua. Mas, pior, insistem em substituir os significados simbólicos da busca do bem comum por uma noção rasa de qualidade do serviço público e eficiência da gestão estatal, motes com os quais embasam sua absurda e intransigente defesa de reformas. Esquecem que o sistema social, com suas normas, valores e expectativas é o responsável pela transformação da potencialidade do subsistema técnico em realidade concreta.
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Se não se pode falar em estelionato eleitoral – afinal o atual governo só chegou lá se valendo de votos de terceiros – pode-se afirmar a traição ao povo brasileiro. Traição por, entre outras coisas, não serem capazes de gerar paixão como energia e motivação indispensáveis para superar crises e celebrar novos pactos. A paixão que geram é sinônimo de sofrimento e de calvário, pois apoiaram-se na truculência para desmantelar compromissos emocionais do povo com o governo.
Não obstante, pedem confiança em um futuro tenebroso. E pedem confiança em si próprios. Mas confiança não se cria expelindo números, como um vulcão, atemorizando populações aflitas com a ameaça dos rios de lava fervente. Confiança se assenta em três pilares, como afirmou Warren Bennis: competência, autenticidade e integridade. Que isso está muito distante do atual governo intuiu profeticamente Gilberto Gil, cantando que ninguém mais tem ilusão no poder da autoridade, porque o poder da autoridade se pode não fez questão, se fez questão não conseguiu, em função da falta de confiança, enfrentar a situação: Ô, ô, ô, gente estúpida! Ô, ô, ô gente hipócrita!
Querem confiança? Comecem respondendo verdadeiramente sobre quem são os responsáveis pelos altíssimos custos sociais da crise econômica a que estamos assistindo. Essa figura fantasmática que se acostumou chamar mercado?
É tempo de valentia cívica, aquele combustível de todos os que lutam por um ideal que creem justo. A valentia cívica fundamenta-se na convicção democrática. Respeitando, dialogando, discutindo e criticando as pessoas, seus valores, pressupostos e artefatos é possível demonstrar com clareza a cínica tentativa de desmanche do pouco que construímos em termos de solidariedade social. E conseguiremos encontrar alternativas para a solução de nossos problemas, bem como projetarmos vida em nossa terra que estava perdendo seu vigor, tomada de ervas daninhas.
Valentia cívica gira em torno de valores humanos e não da ciranda da mercadoria universal que modela as trocas, as relações entre as pessoas, a mercadoria universal, denominada por alguns como dinheiro, por outros como capital. Valentia cívica nos lembra as palavras de Rodolf Steiner, em Testamento sob a forca: “Só vos peço uma coisa: se sobreviverdes a esta época, não vos esqueçais! Não vos esqueçais nem dos bons, nem dos maus. Juntai com paciência as testemunhas daqueles que tombaram por eles e por vós”.
* André Rehbein é economista e docente do mestrado em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados; Dorgival Henrique é diretor da Faculdade de Gestão e Negócios da Unimep.
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