Existe um virtual consenso na sociedade brasileira acerca da necessidade de uma profunda reforma político-eleitoral. Da esquerda à direita do arco político afirma-se, corretamente, que o atual modelo está completamente esgotado e produz distorções de várias ordens. Ademais, o fragilíssimo sistema político-eleitoral brasileiro também sofre de um mal bem maior. A crise da democracia representativa, observada nos quatro cantos do globo terrestre, aumenta muito de intensidade em decorrência das mazelas tupiniquins.
Um dos capítulos mais recentes dessa triste novela, turbinado por dezenas de delações premiadas dos dirigentes de uma das maiores empresas do Brasil, consiste na proposta, costurada pelos caciques dos maiores partidos, de adoção da lista fechada nas eleições proporcionais (para os parlamentos federal, distrital, estadual e municipal). Por essa via, o eleitor sufragaria o partido político e os eleitos seriam aqueles integrantes de uma lista organizada internamente pelas referidas agremiações político-partidárias. Em suma, não haveria voto popular diretamente nos candidatos (https://goo.gl/Y3mBwT).
Ademais, diante da ideia de submeter a reforma político-eleitoral ao crivo do eleitor, por intermédio de plebiscito ou referendo, as agourentas vozes de sempre lançam toda sorte de dificuldades artificiais para a consulta ao titular do poder político, conforme expressa definição do parágrafo primeiro do artigo primeiro da Constituição (https://goo.gl/ap1zKc).
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Ainda no campo político-eleitoral, circula, desde o segundo semestre de 2016, uma inusitada proposta de elevação dos recursos do fundo partidário de 860 milhões de reais (quantia distribuída em 2016) para algo em torno de 3,5 bilhões de reais. Esse aumento pretende viabilizar as campanhas eleitorais depois da proibição, decorrente de decisão do STF, de contribuições por intermédio de pessoas jurídicas (https://goo.gl/pgDbGA).
Os três elementos destacados possuem algo em comum. Trata-se de um profundo desprezo pelo eleitor, fonte direta ou indireta de todo o poder político na República Federativa do Brasil. Afinal, temos uma longa história de acertos e conchavos realizados pelos “donos do poder” e o eterno chamamento do eleitor, notadamente na condição de contribuinte, para “pagar a conta”.
A proposta de adoção da lista fechada de candidatos aos parlamentos possui graves defeitos. Entre eles, podem ser arrolados: a) afronta uma antiga tradição brasileira de voto direto no candidato; b) esconde os candidatos com forte rejeição popular, em especial pela intimidade com práticas escusas de toda ordem (leia-se: corrupção e assalto aos cofres públicos) e c) aumenta enormemente o poder das direções partidárias (em inúmeros casos, verdadeiras máfias partidárias).
Existe uma solução visceralmente melhor que as listas fechadas. Em primeiro lugar, deveria ser adotada a proibição de coligações partidárias nas eleições proporcionais. Em segundo lugar, o voto seria dado em duas etapas: a) o eleitor votaria no partido de sua preferência e b) definiria o voto entre os candidatos do partido escolhido. A implementação de medida nessa linha permite: a) o fortalecimento dos partidos a partir de programas políticos; b) a eliminação do deletério mercado de vagas e tempos de propaganda eleitoral e c) mantém a tradição de escolha direta do candidato pelo eleitor.
Por outro lado, a redução dos custos de campanha, argumento dos defensores da lista fechada, pode ser obtida por outros meios. Nesse campo, a definição de campanhas eleitorais espartanas resolveria o “problema”. O fim dos programas televisivos suntuosos já diminuiria consideravelmente os gastos. A proibição de contratação de “cabos eleitorais” também surtiria efeito significativo. Restrições quanto ao material de propaganda ajudaria bastante na redução de despesas, além do efeito colateral positivo de combater a poluição nas cidades nos períodos eleitorais. Em suma, as campanhas eleitorais devem privilegiar o debate de conteúdo (ideias, propostas, programas, etc) e colocar a forma em plano completamente secundário.
A recusa em ouvir o eleitor é inaceitável. As normas constitucionais relacionados com o plebiscito e o referendo não são meras peças de decoração. Ademais, a utilização frequente desses mecanismos seria de extrema valia para o aumento do patamar de conscientização política, condição essencial para a superação das inúmeras mazelas existentes na realidade brasileira. No caso particular da reforma político-eleitoral, a força da definição popular pode ser o fator decisivo para a superação de inúmeras resistências observadas entre os principais atores políticos para a implementação da medida em bases minimamente aceitáveis.
O pretendido aumento dos recursos do fundo partidário também deve ser fortemente rejeitado. Não há necessidade de financiamento de campanhas mirabolantes, como antes destacado. Parece plenamente razoável um modelo de financiamento público de campanhas eleitorais. Ocorre que esse modelo deve viabilizar uma atividade política modesta, condizente com a realidade brasileira e viabilizadora de uma certa igualdade entre os candidatos concorrentes. Reafirma-se que o pleito deve atrair a atenção dos eleitores pelos conteúdos das ideias e propostas, e não, pela utilização de vistosas peças publicitárias.
Uma radical mudança de rumos precisa ser produzida na nossa prática política. Sua Excelência, o eleitor, precisa assumir o protagonismo na cena política nacional. Essa é uma das chaves para o equacionamento das imensas dificuldades observadas no cenário socioeconômico brasileiro. Esse protagonismo passa necessariamente: a) pela participação ativa nas organizações de representação (estudantis, sindicais, terceiro setor, etc); b) pela inserção efetiva no debate público dos grandes temas nacionais; c) pela identificação de seus interesses socioeconômicos na complexa teia de propostas, projetos, políticas e medidas a serem implementadas pelo Estado e demais atores sociais e d) pela fixação de critérios consistentes na escolha de representantes políticos para o Executivo e o Legislativo. Rigorosamente, não adianta ficar só resmungando e reclamando nas esquinas, mesas de bar e redes sociais (“todos são corruptos”, “todos são ladrões”, “é o fim do mundo”, “vou sair do Brasil”, “não tem jeito”, “intervenção militar”, “intervenção extraterrestre”, etc, etc, etc).
Lembro, por oportuno, as seguintes passagens do instigante livro UM PAÍS SEM EXCELÊNCIAS E MORDOMIAS, da jornalista Claudia Wallin: “Na Suécia, os políticos ganham pouco, andam de ônibus e bicicleta, cozinham sua comida, lavam e passam suas roupas e são tratados como ‘você’ (…) O que mais me despertou a atenção para este país singular, que há dez anos é o país onde vivo, foi a ausência de esquizofrenia nas relações entre o povo e o poder. Em outras palavras, um povo que trata seus governantes e representantes como cidadãos normais, e vice-versa. Um país sem Excelências. Uma sociedade na qual o mandato político não confere um título de nobreza instantânea ao cidadão eleito, nem dá direito às regalias e aos rapapés normalmente dispensados, no Brasil e em outras geografias, a exóticas Cortes de plebeus sustentadas pelos plebeus que estão mais embaixo. Um lugar onde madames não vão às compras em carros oficiais do Parlamento, pagos com o dinheiro dos impostos dos próprios motoristas que carregam suas sacolas. Porque a deputados suecos não se concedem carros oficiais, nem motoristas, secretárias particulares, viagens de jatinho, hospedagem em hotéis de luxo ou verbas caudalosas. Nem luxos, nem privilégios”.
A autora da obra referida destaca que a Suécia foi um dos países mais pobres da Europa até o século XIX. Já o século XX viu florescer uma das mais prósperas, igualitárias e sofisticadas nações do mundo. Qual foi a “mágica”? Não houve “mágica” alguma. Também não foi a atuação de “salvadores da Pátria” que transformou substancialmente a Suécia. As profundas mudanças no cenário daquele país resultaram de uma combinação de fatores, tais como: a) investimentos maciços em educação; b) reforma do sistema político-eleitoral; c) construção de instituições sólidas e respeitadas; d) limitações efetivas para a atuação do capital e e) desenvolvimento de uma extensa e profunda rede de proteção social (o conhecido Estado de Bem-Estar).
A implementação, na Suécia, das medidas mencionadas resultou de profunda conscientização e mobilização do conjunto da sociedade. Aqui, no Brasil, como lá, na Suécia, somente o caminho traçado pelos interesses democráticos e populares em atuação enérgica libertará o país do crônico e persiste atraso socioeconômico.
Vale sempre anotar que os políticos não são propriamente o problema. Eles são descartáveis, podem ser substituídos e, melhor, podem ser enquadrados em fortes mecanismos de exercício espartano da atividade política. Importa, esse é aspecto fundamental, identificar os interesses e forças permanentes existentes na sociedade que emperram o desenvolvimento e a construção de uma nação de bem-estar. Esses interesses e forças escolhem os agentes políticos para viabilizar seus projetos e, até mesmo, para servirem de conveniente cortina de fumaça.
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