Estamos diante das eleições mais imprevisíveis das últimas décadas. No momento em que escrevo este artigo, não há quem se arrisque a dizer, com um mínimo de segurança, qual candidatura sairá vitoriosa do segundo turno, se Dilma Rousseff do PT ou Aécio Neves do PSDB. E como não poderia deixar de ser, essa situação gera muita discussão nos círculos políticos e na imprensa. Neste artigo, quero tratar de dois aspectos desse debate. Na semana que vem, escrevo sobre o voto no segundo turno e os desafios que vejo para os trabalhadores depois das eleições.
Uma das discussões que perpassam hoje o debate político nacional, inclusive em setores da esquerda, é a chamada “onda conservadora”. Ela estaria, segundo algumas visões, tomando conta do país e determinando o cenário político nacional. Também entra nesta conta a votação surpreendente de Aécio Neves no primeiro turno das eleições. Primeiramente, vou tratar aqui do conceito de “onda conservadora”. E, mais adiante, trato da sua repercussão na votação do candidato do PSDB.
Avanço conservador ou polarização social e política?
Há na realidade, de fato, muitos elementos que poderiam indicar a situação descrita pelos que defendem a ideia da onda conservadora como elemento determinante do cenário político do país. É evidente o recrudescimento da repressão e da criminalização das lutas da juventude e dos trabalhadores; o perfil cada vez pior (se isso é possível) dos deputados eleitos para a Câmara Federal; a maior intensidade de manifestações direitistas, como a recente reação dos militares às atividades da Comissão da Verdade e a violência e manifestações preconceituosas (homofóbicas, racistas e machistas). Esses e outros elementos presentes na realidade política do país seriam a expressão do retrocesso que estaria em curso, segundo uma das visões em debate. É isso mesmo?
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Me parece que não. Se é verdade que esses elementos estão sim presentes no cenário político, também é verdade que esse cenário é bem mais complexo. Eles compõem apenas uma parte de uma totalidade que é mais ampla e contraditória. É preciso evitar uma visão parcial, portanto equivocada, do processo. Não por acaso, os vários textos que tratam da “onda” remetem seu início às manifestações de junho e julho do ano passado. Na verdade, essas reações direitistas e preconceituosas têm, sim, emergido no cenário político com mais força desde então. Mas é preciso contextualizá-las.
Sabemos das limitações que marcaram aquelas mobilizações. Elas não contaram com a participação da classe trabalhadora organizada; foram marcadas por imensa confusão política e ideológica sobre qual seria a alternativa a “tudo que está aí”. Isso é natural numa explosão espontânea de descontentamento de setores amplos da população. Aliás, não é por outro motivo que a candidatura que mais empalmou aquele processo foi justamente a de Marina Silva, com toda a ambiguidade de seu projeto político, que acabou desembocando no apoio a Aécio Neves.
PublicidadeNo entanto, não podemos deixar de ver o principal daquele processo. Aquelas mobilizações se constituíram num amplo processo de contestação política de tudo que está aí, uma revolta de um setor grande da população, principalmente da juventude estudantil e trabalhadora. Contestação que se expressou num amplo processo de mobilizações de massas contra os governos de plantão (das três esferas) exigindo mudanças no país, exigindo o atendimento das demandas populares. Manifestações que enfrentaram e derrotaram o enorme aparato repressivo mobilizado para tentar conter a revolta. Foi, portanto, um processo muito progressivo.
Essa ofensiva de massas levou a uma nova situação política no país, a uma mudança na relação de forças na sociedade, mais favorável aos trabalhadores. É também verdade que ela não se mantém da mesma forma, diminuiu muito a participação das pessoas nas mobilizações de rua. No entanto, o processo segue e se aprofunda por outros meios, pelas centenas de greves, ocupações e outras formas de luta que têm sacudido o país nos últimos meses.
O avanço da contestação social, da exigência de mudanças no país para atender às demandas populares, por consequência implica maior ameaça aos privilégios dos que sempre exploraram e oprimiram nosso povo. Vem daí a reação do poder econômico (que se materializa de forma mais clara na violência da polícia e no processo de criminalização das lutas, mas não só), na ação da mídia e também na reação dos setores mais direitistas e preconceituosos da sociedade. E tudo isto acaba por compor um quadro de maior polarização social e política no país. Esta é uma característica da nova situação da luta de classes aberta pelas mobilizações de junho de 2013.
É importante compreendermos essa totalidade, buscando evitar uma análise simplesmente jornalística do cenário político. É preciso ir ao processo mais estrutural, identificando os movimentos mais profundos das massas e da classe trabalhadora. Enxergar a reação dos setores mais à direita sem ver, do outro lado, a ofensiva das massas que a detonaram vai levar a uma leitura errada da conjuntura.
A expressão desse processo na eleição de deputados se deve a mais fatores, que vão desde o fato de que as eleições refletem de maneira muito distorcida a realidade, passando pela influência do poder econômico até a própria forma de votação (se a votação para presidente da República viesse em primeiro lugar na urna eletrônica, teríamos, certamente, uma abstenção talvez até majoritária na votação para deputados). Aliás, a soma de votos brancos, nulos e abstenções é a segunda colocada no primeiro turno das eleições, o que não deixa de ser expressão também da própria crise de representatividade do sistema que ficou escancarada em junho de 2013.
A responsabilidade do PT na votação de Aécio
É absolutamente certo que a votação de Aécio reflete a opinião da maior parte dos banqueiros e grandes empresários de quem ele é o principal representante na disputa eleitoral em curso (parte importante segue ainda apoiando o PT). É expressão também do voto da maioria dos setores mais direitistas da sociedade, a maioria dos setores mais atrasados, machistas, homofóbicos e defensores de toda sorte de preconceitos. Mas, se fosse só isso, a vitória do PT não estaria ameaçada.
Aqui, há um problema que é o seguinte: enxergar o crescimento da votação de Aécio apenas pelo viés da tal “onda conservadora” ajuda o PT a esconder a sua responsabilidade neste quadro. Oculta o fato de que muitos dos votos dados a Aécio, milhões deles, vêm de trabalhadores, trabalhadoras e jovens que simplesmente se decepcionaram e sentiram-se traídos pelos governos do PT.
Sentiram-se abandonados por um governo que se aliou aos banqueiros e grandes empresários garantindo seus privilégios e manteve essencialmente o mesmo modelo econômico aplicado pelos governos do PSDB, negando aos trabalhadores e à juventude as mudanças que estes reclamam nas ruas e nas greves. E, pior ainda, repetindo pura e simplesmente a velha prática das alianças espúrias e da corrupção como prática de governo.
Não fosse isso, o que explicaria que Aécio tenha ganho a eleição no primeiro turno no Campo Limpo, Jardim São Luís, Ermelino Matarazzo, Sapopemba, bairros da periferia da cidade de São Paulo, redutos tradicionais do voto petista? Ou o crescimento da candidatura do PSDB dentro das grandes fábricas do ABC Paulista e da zona sul de São Paulo, antes também reduto do PT? Ou ainda, a derrota deste partido em todas as cidades do ABC Paulista?
Esses milhões de votos são de oposição a tudo que aí está. São votos por mudanças, por melhoria nas condições de vida dos trabalhadores e do povo pobre. E, mais uma vez, pela funcionalidade (para o poder econômico, é claro) do sistema eleitoral brasileiro, este descontentamento é canalizado para a candidatura que aparece com chances de derrotar o atual governo, o PT. São “votos de castigo” no PT, e para isso os trabalhadores usam o que têm às mãos, a candidatura do PSDB. Mas não têm nenhum tipo de alinhamento programático com o candidato tucano.
Pelo contrário, é o voto de milhões de trabalhadores que muito provavelmente estarão nas lutas contra um eventual governo Aécio (pois se o candidato tucano ganhar, vai fazer mais ataques contra o nível de vida dos trabalhadores, e não as mudanças que o povo quer). E que estarão nas ruas lutando também contra um eventual governo Dilma, que não prepara nada diferente do PSDB para a vida dos trabalhadores caso ganhe a eleição. Aliás, do outro lado, muitos dos trabalhadores que seguem votando em Dilma o fazem mais por medo da volta do PSDB do que por apoio mesmo à candidata do PT, tal o desgaste deste partido.
Passadas as eleições, veremos como se desenvolve esse quadro de polarização política e social que se abriu em junho de 2013.
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