O Senado viveu a pior crise de sua história em 2009. Naquele ano, notícias de desmandos correram o país, em processo que revelou o caso dos atos secretos e quase culminou com a queda do atual presidente da Casa, José Sarney (PMDB-AP), que ocupou o posto em duas gestões anteriores – ele chegou a enfrentar 11 representações no Conselho de Ética, todas arquivadas. Sindicância interna evidenciou que um grupo há décadas instalado na cúpula institucional não dava, entre outras irregularidades, a devida publicidade a movimentações administrativas, como exige a lei. O procedimento permitia, entre outros desvios, nomeações sem concurso, concessão de gratificações sem qualquer critério e pagamento de horas extras sem merecimento. Três anos depois, a conta começa a ser cobrada: confirmando decisão preliminar, a juíza Vânia Hack de Almeida, da Justiça Federal do Rio Grande do Sul, determinou a devolução aos cofres públicos de R$ 6.252.008,92 pagos a 3.883 funcionários como adicional de hora extra, em janeiro de 2009, época de recesso parlamentar no Senado.
Leia também
No final do ano passado, segundo a Secretaria Especial de Comunicação do Senado (SESCS), o Senado conseguiu derrubar a liminar da juíza, suspendendo os efeitos da determinação. Mas a ação continua em execução, depois que a juíza juntou à liminar anteriormente expedida uma citação para que o Senado mantivesse a orientação, aos servidores, de devolução dos valores. Caberá aos próprios réus prover suas defesas.
Provocada por uma ação popular proposta em 31 de março de 2009, a magistrada, em caráter liminar, havia determinado em novembro passado a devolução do montante. Em seu despacho, ela registra que, por iniciativa própria de alguns servidores, orientados por senadores, já foram restituídos R$ 531.421,90, em desconto incidente na folha de pagamento. A ação cita como réus o então presidente do Senado, Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), hoje ministro da Previdência que exercia mandato-tampão e foi sucedido por Sarney; o ex-senador Efraim Morais (DEM-PB), que era primeiro-secretário do Senado à época; a Advocacia Geral da União, e os funcionários que receberam indevidamente a remuneração extra.
A juíza Vânia lembra que, naquele período de 2009, “não havia atividade legislativa naquela Casa parlamentar”. Logo, não havia atividade que justificasse o pagamento de horas-extras. Mencionando a demanda dos autores da ação – os advogados gaúchos Irani Mariani e Marco Pollo Giordani, que apontam a “imoralidade do ato administrativo impugnado” –, a magistrada acata a tese de “lesão ao erário público decorrente de execução fraudulenta ou irreal das horas extraordinárias”, obrigando os responsáveis a repor o débito. Em sua decisão, Vânia estabelece que a devolução dos valores pode ser feita por meio de desconto automático na folha de pagamento com o limite de 10% da remuneração mensal, até que o total pago a cada servidor seja restituído, consideradas a correção monetária do período e o acréscimo dos juros legais.
Outros excessos
Na ação, Irani e Marco Pollo pedem não só a anulação do ato de concessão das horas extras em foco e a restituição dos valores. Os advogados questionam outros expedientes que consideram “excessos”. Eles também postulam a redução do número de servidores à disposição de cada senador, bem como das remunerações mensais. Os autores também pedem “a redução dos cargos de 181 diretores, a revisão mensal do valor de custo de cada senador e a extinção do 14º e 15º salários”. Mas a juíza só manteve a demanda referente às horas extras.
Os advogados gaúchos também pediram a inclusão no processo, “no pólo passivo”, dos ex-diretores Agaciel Maia (Diretoria Geral) e João Carlos Zoghbi (Recursos Humanos) na condição de responsáveis diretos pelos pagamentos. O procedimento tornava desnecessária a citação dos mais de três mil servidores indevidamente beneficiados, uma vez que a transferência das quantias não seria efetuada sem a chancela dos ex-diretores.
Apontados em sindicância, entre outras irregularidades, como responsáveis pela emissão de atos administrativos clandestinos, Agaciel e Zoghbi foram exonerados de suas funções em 2009 e passaram a responder processo na Justiça comum. Arregimentando apoio entre servidores do Senado, Agaciel se elegeu deputado distrital pelo PTC nas eleições de 2010. Zoghbi foi demitido pelo então primeiro-secretário Heráclito Fortes (DEM-PI), que sucedeu Efraim no posto.
Sindilegis defende os pagamentos
O processo corre na 5ª Vara da Justiça Federal de Porto Alegre (Ação Popular nº 2009.71.00.009197-9/RS), com pedido de sigilo de Justiça impetrado pela União, que foi negado. Como reação à decisão judicial, o Sindicato dos Servidores do Legislativo (Sindilegis) colocou assistência jurídica gratuita à disposição dos servidores sindicalizados, com custeio integral de advogados próprios. O sindicato considera que não houve irregularidade no pagamento de horas extras não trabalhadas, e veiculou nota alertando que os réus têm até 20 de fevereiro para apresentar procurações para instrução de defesa e contestação.
“Isso porque a defesa será feita de qualquer modo a evitar os efeitos da revelia, pois o próprio Código do Processo Civil autoriza este procedimento”, esclarece o sindicato, lembrando que a ação engloba servidores aposentados a partir de 2009. “Caso o servidor não se manifeste até o prazo indicado, poderá ser obrigado a devolver os valores recebidos mesmo que a ação termine em êxito em favor do Senado. Portanto, cabe aos servidores afetados, na defesa de seus interesses, a iniciativa de constituir advogado para incluir sua manifestação nos autos.”
Caso o servidor acionado judicialmente não seja sindicalizado, lembra ainda o Sindilegis, ele terá dois caminhos a seguir: filiar-se e passar a “usufruir de [sic] mais esse serviço oferecido pelo Sindilegis” ou constituir advogado próprio, com gastos advocatícios que podem até ultrapassar o valor das horas extras a restituir. É o caso de um servidor não sindicalizado que, em desabafo ao Congresso em Foco, disse ter trabalhado no período em questão e, tendo recebido o adicional, vai ter de se defender sozinho. Até porque o Senado se limitou a notificar a decisão da Justiça gaúcha, sem qualquer providência em favor dos servidores, sejam eles efetivos ou comissionados.
“Ninguém defende a gente”, reclamou o servidor, que preferiu não se identificar. “Eu estou indignado, porque eu não sou fraudulento, e trabalho muito. Imagina se eu vou me defender lá no Rio Grande do Sul, onde a ação foi aberta. Se eu fizer isso, vou passar por fraudulento”, argumentou, dizendo que não levaria adiante sua defesa. Ele diz que, se o fizesse, gastaria mais com advogados do que com a devolução das horas extras.
Segundo a Secretaria Especial de Comunicação, muitos dos servidores citados devem desistir de levar adiante as contestações, aceitando a determinação de desconto na folha salarial. Outros, continua a SESCS, devem se unir às entidades representativas implicadas na ação, como o próprio Sindilegis, e dar prosseguimento às respectivas defesas. “O Senado não tem posição oficial sobre o assunto, e se limitou a comunicar os servidores [da decisão judicial], determinando o cumprimento dos autos do processo. Cada servidor é responsável por sua posição individual. O Sindilegis, inclusive, não faz parte do Senado”, esclareceu a secretaria.
Onde há fumaça…
O pagamento das horas extras foi revelado pelo jornal Folha de S.Paulo em 10 de março de 2009. Na época, a imprensa nacional já vinha noticiando excessos de prerrogativa de senadores e servidores – como uso indevido de passagens aéreas pela então senadora Roseana Sarney (PMDB), hoje governadora do Maranhão, como este site mostrou, com exclusividade, naquele mês. A reportagem foi o embrião da série que ficou nacionalmente conhecida como farra das passagens, que, junto com outros trabalhos, rendeu ao Congresso em Foco em 2009 a “tríplice coroa” da premiação jornalística: os prêmios Esso, Embratel e Vladimir Herzog.
Relembre: Senado paga 291 voos para ex-senadores
Naquele ano, uma enxurrada de desvios vieram à tona. Destaque para o caso das centenas de atos administrativos secretos emitidos sem qualquer publicidade e para os mais variados fins – de nomeações e promoções de aliados à concessão ilegal de gratificações e aposentadorias. Desde que foi criado, em 2004, este site tem noticiado os mais diversos casos de desmando institucional, todos eles caracterizados pela pouca (ou nenhuma) transparência, como parece ter sido o caso das horas extras de janeiro de 2009. Como exemplos, os R$ 84 milhões do Interlegis não fiscalizados pelo Senado; o “candidato-fantasma” que ao mesmo tempo batia ponto e fazia campanha eleitoral no Mato Grosso; e o pagamento de supersalários, em afronta à Constituição, a centenas de servidores apenas na Casa (ao menos 3,9 mil no serviço público).
Leia também:
Advogados da União apontam “inépcia” da ação popular
Atualizado em 07/02/2012, às 21h.