A literatura e a música brasileira contam com contribuições incríveis de homens e mulheres negras, artistas formidáveis, gente que soube eternizar o barraco de zinco, que a juventude talvez não saiba exatamente o que seja. O povo negro soube, por diversos caminhos, fazer arte a partir da dura realidade que a pobreza nos impõe tanto quanto das alegrias que as festas nos proporcionam. Nas duas situações a descrição de um e outro cenário são tão fortes que podemos transportar nossos corpos à letra escrita e à letra falada. Quando é festa, o sentimento é riso, quando é pobreza, o sentimento é dor. Lembranças tristes, não raro, se transformam em ação.
O poema de Solano Trindade, “Tem gente com fome” é uma dessas peças de arte em ação. Solano nasceu em Recife, em 1908, e foi um artista de múltiplas expressões, um homem a frente do seu tempo e profundamente conectado à experiência de organização da população negra por direitos, dignidade e criatividade. Daí que, entre muitos de nossos poetas e poetisas, escolher Solano Trindade como inspiração máxima da Campanha Se Tem Gente com Fome, Dá de Comer foi reconhecer sua importância e compromisso no combate às exclusões e ao racismo.
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A Campanha liderada pela Coalizão Negra por Direitos , e por um conjunto de organizações parceiras, foi lançada em março de 2021 em resposta ao incrível agravamento da fome no país e, em especial, junto à população e famílias negras. Para a Coalizão, composta por mais de 250 organizações do movimento negro e de mulheres negras, além de organizações da sociedade civil aliadas no combate ao racismo, esse agravamento não era uma novidade.
As políticas sociais e econômicas postas em práticas pelo atual governo já sinalizavam o cenário de terra arrasada sobre o qual decidiram marchar. A pandemia global da Covid-19 aprofundou e acelerou os impactos negativos que já se desenhavam de forma transparente, ampliando desigualdades sociais históricas e estruturais, dentre elas a desigualdade étnico/racial.
Não há como negar que a crise sanitária teve efeitos ainda mais perversos para aqueles que vivem no mercado informal de trabalho, para os desempregados, para aqueles que vivem em situação de pobreza, e para os que vivem nas favelas e nas periferias. E não há como negar porque os indicadores de mensuração desses aspectos de vulnerabilidade social atestam: a população e famílias negras são as mais afetadas. A coluna Olhares Negros tratou desses assuntos em vários artigos desde outubro de 2020.
A fome, sabemos, não é um acaso. A fome sempre rondou o nosso cotidiano e, agora, se mostra, mais uma vez, implacável. A fome não é silenciosa, ela grita. Temos sido testemunhas de pessoas que se humilham na busca de um pedaço de osso de boi para se alimentar, que se arrastam por um quilo de pés de galinha para alimentar a si e às suas famílias. E neste mar de desespero há muito a fazer além das grandes lutas. Fortalecer as iniciativas que pregam a solidariedade é uma opção honesta, elas reconhecem o valor e o mérito de pessoas que, de forma voluntária, têm arregaçado às mangas e enfrentado a fome ofertando não apenas comida, mas dignidade, resistência e esperanças no plural.
PublicidadeA Campanha Se Tem Gente com Fome, Dá de comer é uma dessas iniciativas. As organizações que integram a Coalizão realizaram levantamento das famílias em situação de vulnerabilidade em seus territórios – 220 mil famílias nos 27 estados do país. O primeiro balanço desta ação, divulgado em setembro, demonstra o quanto podemos fazer a diferença na vida das pessoas e, ao mesmo tempo, lutar por dignidade e cidadania.
Ao longo desses meses, a Campanha mobilizou 1.500 voluntários, arrecadou R$ 18.800 milhões e atendeu 103 mil famílias em todo o país. Levando em consideração as peculiaridades dessas famílias e dos territórios que habitam, as doações tiveram três perfis diferenciados e, assim, foram distribuídos cartões que permitiam a compra de gênero alimentícios e de higiene, cestas básicas e cestas de alimentos orgânicos. No conjunto, a Campanha distribuiu 28.723 cestas básicas, 53.902 cartões de alimentação e 55.454 cestas de alimentos orgânicos. O volume em dinheiro arrecadado também surpreende em seu perfil, dos R$ 18 milhões arrecadados, mais de R$ 10 milhões foram doados por pessoas físicas e com um detalhe importante, mais de 40 mil pessoas fizeram doações de até R$ 200,00. Daí que agradecer é mesmo um ato necessário, e não complementar, à prática da solidariedade.A alimentação é uma experiência sagrada, uma necessidade às nossas vidas e de inúmeros rituais sagrados que a humanidade, ao longo de sua existência, elaborou como cultura e respeito ao próximo e à natureza. Assim aprendemos em nossas comunidades de terreiro. Não por acaso, o preparo dos alimentos e seu compartilhamento é, ao mesmo tempo, uma festa e uma celebração ao sagrado.
Guardamos o sentimento vigoroso da nossa ancestralidade quando se trata de dividir o alimento para todos.
Não é recente o sentimento comunitário de resistência e muito menos a postura combativa dos moradores do Calabar em Salvador. Foram escravos negros trazidos da cidade nigeriana de Kalabari que fugiram da exploração dos engenhos e construíram o Quilombo dos Kalabari, local onde fica, atualmente, a comunidade localizada na zona de intersecção entre o Jardim Apipema, o bairro de Ondina e a Avenida Centenário, região nobre de Salvador.
A ocupação massiva do local se iniciou em meados da década de 60, época de intenso êxodo rural e do Recôncavo, e do consequente processo de favelização em Salvador.
Foi em uma manhã que não me lembro o dia, a TV local fez uma reportagem que falava do Calabar chamando atenção dos telespectadores dizendo: Esse é o momento da solidariedade”. Um morador com voz forte embora um tanto embargada declarou: “Eu acho que nós não podemos deixar uma pandemia da fome ser criada. Hoje quem sofre mais é quem mora em comunidade, aquela doméstica, aquela pessoa que vive de biscate para sustentar seu filho”. Percebe-se que o incomodo maior era a falta de alimento na casa do vizinho. Uma solução surgiu imediatamente, dando início a mais uma transgressão de conformismo. Uma velha estante de ferro, emprestada da escolinha foi encostada cuidadosamente em um lugar visível para quem passa pela rua.
O locutor da Rádio Comunitária começa a sua jornada bradando com voz forte e altiva: – Está aberto o nosso Mercadinho Solidário. – “Quem poder doar, pode vir entregar alimentos. Caso o doador more distante do Calabar, uma equipe vai buscar a doação em sua casa. Para quem está passando dificuldades, pode chegar e retirar o que está precisando”.
Isto me faz lembrar uma história que celebramos todo ano em comunidades de terreiro. Conta-se que Xangô, o rei de Oyó, resolveu dar uma grande festa… Muita alegria e fartura, mas no meio da festa perceberam a ausência de Omolu que não foi convidado por puro esquecimento. Para que ele não ficasse zangado, resolveram levar toda comida e bebida para continuar a festa em sua casa. Com muito jeito todos foram desculpados, mas tiveram que chamar todo povo do lugar, para a comida da festa que todo ano se repete em nossos terreiros.- É o Olubajé. – A COMIDA PARA TODOS.
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