Quem não viveu os tempos sombrios da ditadura militar pode não perceber a gravidade do momento pelo qual passamos. Estamos prestes a sofrer um grave retrocesso das liberdades democráticas pelas quais muitos pagaram com a vida para conquistarmos. Exagero? Duas medidas gestadas no Congresso e no governo federal bastariam para mostrar que não.
A primeira delas é o Projeto de Lei do Senado (PLS) 499/2013 que institui o crime de “terrorismo” no país. Esse projeto foi elaborado por uma comissão mista no ano passado, mas teve a tramitação acelerada nos últimos dias diante da comoção causada pela morte do cinegrafista da Band Santiago Andrade. Longe de ser um projeto criado a partir das forças remanescentes da ditadura, ele leva a assinatura do senador Romero Jucá (PMDB-RR) e do deputado petista Cândido Vacarezza (SP). O senador Jorge Viana (PT-AC), por sua vez, foi quem pediu regime de urgência à medida.
Mas qual o sentido de se tipificar o crime de “terrorismo” para um país como o Brasil? O próprio PLS indica a resposta. Para seus autores, será considerado “terrorista” quem “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade da pessoa”. As penas podem variar de 15 a 30 anos. Ora, esse conceito de terrorismo é tão vago que vai depender do delegado de plantão o enquadramento ou não nesse crime de, por exemplo, um manifestante detido num protesto público. A rigor, caso essa lei seja aprovada, todos os ativistas que estiverem num ato serão um terrorista em potencial.
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Assim como nos anos do regime de exceção, os que se colocam contra o atual estado de coisas são tachados de “terroristas” e criminalizados. Esse é o real sentido desse projeto de lei, como sabemos muito bem. Trata-se de criminalizar as manifestações e os ativistas a fim de se garantir um clima de tranqüilidade para a realização dos grandes eventos, como a Copa do Mundo da Fifa.
Mas isso não é tudo. Se a lei de terrorismo não for o suficiente para intimidar os manifestantes, a nova lei que é articulada diretamente através do Executivo, por meio do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, promete legitimar ainda mais a repressão contra os protestos. Essa lei tem sido elaborada a partir das reuniões de Cardozo com os secretários de Segurança Pública dos estados, incluindo Rio e São Paulo. O principal ponto repercutido na imprensa é a proibição de máscaras nas manifestações, como já ocorre no Rio e em Pernambuco. Quem for detido por usar máscara e reincidir no “crime” pode pegar dez anos de cadeia.
Quando o governo Cabral impôs a proibição das máscaras no Rio, não foram poucos os juristas que alertaram para a inconstitucionalidade da lei. Afinal, usar ou não máscara é direito de cada um e está relacionado com a liberdade de expressão, ainda mais numa manifestação pública em que o humor e o lúdico são amplamente utilizados para criticar e ironizar os políticos, a polícia e as instituições. Mas, para o governo Dilma, a inconstitucionalidade não parece um problema.
PublicidadeDiscutem-se ainda outras medidas, como a obrigação de se avisar quando e onde serão as manifestações às autoridades com antecedência e reafirma-se a legitimidade do uso das balas de borracha por parte da polícia. As mesmas balas de borracha que feriram gravemente manifestantes nos últimos meses, como o fotógrafo em São Paulo que perdeu um olho.
A iminência da aprovação do projeto de lei antiterror e da lei das manifestações públicas se dá num momento em que a trágica morte do cinegrafista é utilizada para uma verdadeira campanha massiva contra os protestos e as organizações dos movimentos sociais e partidos de esquerda, como o PSTU. Desinformação ou má-fé? Infelizmente, o contexto deixa pouco espaço para pensarmos em mera coincidência.
Uma portaria assinada no final de dezembro passado pelo ministro da Defesa, Celso Amorim, autoriza as Forças Armadas a intervirem em conflitos internos. Chamada de “Garantia da Lei e da Ordem”, a portaria autoriza o Exército, Marinha e Aeronáutica agirem em situações como “bloqueio de vias públicas, distúrbios urbanos, paralisação de atividades produtivas, depredação de patrimônio público e invasão de propriedades”. A primeira versão da portaria listava como possíveis “forças oponentes” das Forças Armadas “segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos sociais, entidades, instituições, e/ou organizações não governamentais que poderão comprometer a ordem pública ou até mesmo a ordem interna do país”. Nesse último dia 19, a presidente Dilma afirmou publicamente que o Exército pode agir em manifestações contra a Copa do Mundo.
Isso não é de hoje. Desde 2013, assistimos a uma escalada na violência repressiva da polícia e da Justiça contra as manifestações. Só para se ter uma ideia, desde junho, mais de dez pessoas morreram em decorrência das verdadeiras praças de guerra instauradas pela polícia nas manifestações. Mais de duas mil pessoas foram detidas pela polícia em atos públicos. A esmagadora maioria nas famigeradas e ilegais detenções para “averiguação”, sem qualquer tipo de flagrante. Avançam ainda os indiciamentos e as investigações de ativistas, inclusive pela Abin. Em janeiro último, um manifestante foi baleado pela Policia Militar de São Paulo, enquanto corria sozinho e era perseguido por três policiais. E agora, a PM do estado anuncia a criação de uma “tropa especial” para lidar com as manifestações. Todos os seus integrantes “fortes” e devidamente versados em artes marciais. Aos questionamentos das ruas, os governos e a polícia respondem com mais repressão.
Os governos não deram respostas às reivindicações que levaram o povo às ruas em junho. Pelo contrário, a cada dia os problemas só aumentam. O transporte público, por exemplo, que serviu de estopim às mobilizações no ano passado, é uma panela de pressão prestes a explodir. À população, resta protestar e exigir nas ruas as mudanças que lhe são negadas no parlamento. Resta saber se os governos, incluindo o governo Dilma, vai ouvir os protestos ou se vão insistir nessa escalada de criminalização e repressão, rumo a uma “ditadura padrão Fifa”.
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