A comissão mista de deputados e senadores que avalia a Medida Provisória n.º 766, conhecida como ‘quase-Refis’, aprovou no dia 3 de maio o parecer do relator, o deputado federal Newton Cardoso Junior (PMDB-MG). A MP transforma a medida em um super programa de parcelamento e perdão de dívidas tributárias para empresas. O ‘quase-Refis’ passa a ser ‘mais do que um Refis’, segundo a advogada tributária Ana Cláudia Utumi, do escritório Tozzini Freire. O texto aprovado na comissão altera completamente a primeira versão proposta. Antes apenas empresas com prejuízos fiscais, gerados pelos anos de prejuízo contábil, poderiam ter de fato um benefício.
No entanto, não tinham qualquer desconto. O parcelamento era em até 120 vezes. Caso venha a valer o texto aprovado, toda e qualquer empresa terá benefícios para participar do programa, mesmo que não tenha os tais prejuízos fiscais. As dívidas poderão ser pagas com desconto de 90% do valor das multas, de 99% do valor dos juros e honorários e ainda parcelado em 240 vezes.
Para identificar esse festival de vantagens relacionado com dívidas não pagas, notadamente tributárias, para com a União foi adotada a sugestiva expressão “REFIS da sonegação”.
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O desacreditado governo Temer-Meireles-Padilha, como retratado pela Folha de São Paulo, não custou a identificar a possibilidade de instalar mais um balcão de negócios em torno do “REFIS da sonegação”. Nem mesmo a profunda incongruência de patrocinar reduções de receitas ante o (falso) discurso do apocalipse nas contas previdenciárias inibiu os arraigados instintos das velhas raposas instaladas no governo federal.
O “REFIS da sonegação” é a “ponta do iceberg”. Trata-se da pequena parte visível de algo bem maior. Esse algo bem maior é o atual sistema tributário construído por poderosas forças políticas e econômicas. Assim como o “REFIS da sonegação”, os traços mais salientes da tributação no Brasil apontam para a definição de privilégios para uma minoria e ônus excessivos para a grande maioria da população. Destaquem-se algumas das principais e perversas características desse sistema.
PublicidadeA extensa e multifacetada legislação tributária infraconstitucional em vigor no Brasil promove: a) uma fortíssima pressão sobre o consumo (e o trabalho, por extensão), aliviando outras bases econômicas (como a propriedade e a renda) e b) inúmeros benefícios (ou privilégios) fiscais socialmente inaceitáveis.
Segundo dados da Receita Federal do Brasil e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, a tributação da base de incidência consumo no Brasil alcança a casa dos 50% da arrecadação total contra: a) 16,2% nos EUA; b) 18,8% no Japão; c) 27,4% na Alemanha; d) 32,6% no Reino Unido; e) 26,6% na França; f) 27,4% na Itália e g) 29,4% na Espanha. Assim, os segmentos sociais mais onerados pela tributação no Brasil são o consumidor e o trabalhador.
Em outras palavras, da sociedade como um todo, as classes médias e populares e os trabalhadores arcam com a maior parte do ônus fiscal. Ademais, a excessiva tributação sobre o consumo implica em significativa oneração do produto, redução da demanda, restrição à produção, redução da oferta de empregos e prejuízo ao crescimento econômico. Segundo vários estudos, a tributação incidente sobre os salários (renda decorrente do trabalho) também atinge patamares alarmantes. Incluindo consumo e renda (impostos e contribuições previdenciárias), a pressão fiscal chega a quase 49% da remuneração justamente daqueles localizados nas mais baixas faixas de renda familiar, conforme análise do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil – Sindifisco Nacional.
Se não bastasse a tributação mais generosa da renda decorrente do capital e do patrimônio, em relação ao consumo e a renda decorrente do trabalho, identificam-se uma série de favores fiscais dirigidos justamente para aqueles agentes ou segmentos econômicos com maior capacidade de contribuir para o financiamento dos gastos públicos. Eis, somente para ilustrar a consideração anterior, alguns desses expedientes escusos: a) os juros sobre o capital próprio; b) a isenção da distribuição de lucros e dividendos e da remessa de lucros para o exterior; c) a tributação exclusiva na fonte sobre os ganhos e rendimentos de capital e d) isenção do imposto de renda para investidores estrangeiros no âmbito do mercado financeiro (e toda sorte de alívio tributário nesse segmento da economia).
Segundo estudo da Receita Federal, as renúncias de receitas em conjunto (realizadas e projetadas), entre os anos de 2010 e 2018, atingirão o impressionante patamar de R$ 501,4 bilhões. Somente no ano de 2015, as desonerações apuradas representaram cerca de R$ 106,7 bilhões.
O Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) mantém, na internet, um painel denominado Sonegômetro. No espaço em questão, são apresentados dados estimados da sonegação tributária por intervalos de tempo e por habitante. Para chegar aos números apresentados no placar, a entidade de classe apresenta um estudo do fenômeno no Brasil e conclui que a subtração de recursos dos cofres públicos por essa via atinge o preocupante nível de R$ 500 bilhões por ano.
A administração tributária, notadamente o segmento responsável pela recuperação de créditos não pagos, representada no plano federal pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e pelos Procuradores da Fazenda Nacional, experimenta dificuldades de todo tipo. Os entraves para o escorreito funcionamento das atividades de cobrança das dívidas inscritas passam por: a) restrições orçamentárias; b) ausência de carreiras de apoio administrativo especializadas; c) deficiências de ordem material (em instalações, equipamentos, sistemas informatizados, veículos, etc); d) deficiências no conjunto de prerrogativas necessárias para o exercício eficiente e independente das atribuições funcionais; e) padrões remuneratórios destoantes das demais carreiras jurídicas; f) ausência de autonomia administrativa e g) gestões administrativas fundadas em cadeias de cargos comissionados e refratárias a modelos democráticos e participativos.
Existe um dado conjuntural que agrava e alimenta o “REFIS da sonegação”. Temos um governo, e suas forças de sustentação parlamentar, mergulhados em corrupção e fisiologismo. Ademais, esses setores cumprem uma agenda posta pelas classes dirigentes no sentido de desmontar a rede de proteção social desenhada na Constituição de 1988. Os ataques aos direitos sociais são poderosos, constantes e bem articulados. Nesse projeto elitista estão inseridos, entre outros: a) o teto para gastos sociais; b) a reforma trabalhista; c) a terceirização e d) a reforma da previdência. Tudo aponta, portanto, para a existência de um contexto favorável a atuação mais despudorada possível dos interesses e pretensões mais descabidos e mesquinhos existentes na sociedade brasileira. Devedores e sonegadores de todo gênero viram na MP n. 766, originariamente um programa modesto de parcelamento, uma oportunidade ímpar de emplacar toda sorte de privilégios e benesses imagináveis. Reuniram e ampliaram praticamente todas as vantagens existentes em programas anteriores de parcelamentos especiais.
Essas questões tributárias, assim como outros aspectos estruturais da vida nacional, não recebem a devida atenção pela grande mídia. Parece, no roteiro cuidadosamente encenado pela grande imprensa, que os problemas nacionais de maior envergadura estão limitados às dimensões estritamente fiscais dos gastos com a previdência social, remunerações de servidores públicos e escândalos de corrupção. A triste consequência desse enredo é a falsa concepção de que as soluções para os dificuldades do país devem ser buscadas quase que somente em movimentos de restrições de direitos sociais e combate policial e judicial aos esquemas de malversação do patrimônio público.
Afirmo, e repito à exaustão, que o único caminho factível para superação das principais mazelas nacionais, mesmo lento e trabalhoso, reside na força insuperável da intervenção popular. Somente a mobilização e conscientização populares, em torno de medidas efetivamente transformadoras, mudarão substancialmente o panorama deletério observado no Brasil. Trata-se de atuação que não pode, nem deve, ser terceirizada para líderes “esclarecidos” ou “salvadores da Pátria”. O protagonismo das mudanças de fundo, sem prejuízo de combativos e comprometidos representantes e lideranças políticas como seus instrumentos, deve estar centrado na cidadania em atuação enérgica e decisiva nos mais variados espaços sociais.
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