Às vésperas do Carnaval, quando o Ministério da Saúde reforça a campanha de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis, a Câmara ganhou uma proposta que promove o debate sobre a transmissão do vírus HIV, causador da Aids. O projeto, recém-apresentado, endurece a punição para quem transmitir, de maneira proposital, o HIV para outra pessoa. Torna essa conduta crime hediondo, ou seja, um delito inafiançável tão grave quanto estupro, assassinato por grupo de extermínio ou genocídio.
“É necessário criar uma lei exclusiva para esse tema, já que a Aids é uma doença que não possui cura”, defende o deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS), que assina o projeto, resgatado de uma proposta apresentada pelo ex-deputado Enio Bacci (PDT-RS) em 1999.
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O Artigo 130 do Código Penal prevê que expor alguém ao contágio de doenças venéreas intencionalmente rende uma pena de um a quatro anos de prisão. Para Pompeo, a gravidade da Aids exige uma lei específica. Além de não poderem sair da cadeia sob fiança, os acusados de crime hediondo enfrentam maiores obstáculos para ganhar liberdade e são obrigados a começar a punição em regime fechado.
“Muitos jovens são vulneráveis a grupos organizados por meio da internet, que planejam transmitir o vírus HIV furando preservativos. Há casos em que homofóbicos contratam garotos de programas soropositivos para espalhar a doença entre os homossexuais”, exemplifica o pedetista.
De forma deliberada ou não, o risco de transmissão do vírus é grande. Segundo o Ministério da Saúde, 45% dos brasileiros com vida sexual ativa não usaram camisinha nas relações casuais no último ano. A incidência do HIV entre a população de 15 a 24 anos aumentou 40% nos últimos nove anos. Um crescimento atribuído pelos especialistas, em parte, a um relaxamento provocado pelo sucesso dos coquetéis de remédio, que garantem maior qualidade de vida aos infectados.
PublicidadePolêmica
Pompeo de Mattos alega que sua proposta é voltada à proteção, sobretudo, dos homossexuais. Mas o projeto não tem o apoio de lideranças do movimento gay nem de entidades engajadas na prevenção da Aids. Eles temem que os portadores do vírus passem a ser ainda mais discriminados caso a lei seja endurecida para a transmissão do HIV.
Cristina Moreira, coordenadora de projetos da ONG Sociedade Viva Cazuza, acredita que trabalhar a prevenção de DSTs é mais eficaz do que penalizar os transmissores. “Se está havendo uma alta nos índices de Aids, significa que a prevenção é falha”, argumenta Cristina.
Fundada pelos pais do cantor em 1990 – ano da morte do artista em decorrência da Aids – a instituição atende crianças e adolescentes soropositivos. Cristina sustenta que as bancadas evangélica e católica do Congresso Nacional impedem que o governo faça um trabalho efetivo nas escolas para reduzir o contágio da epidemia.
Mais conscientização
Coordenador de Políticas LGBT da Prefeitura de São Paulo, Alessandro Melchior acredita que o jovem tem a obrigação de se proteger utilizando camisinha. “É sensato enquadrar grupos que promovam a transmissão da Aids. Mas é relevante lembrar que a relação sexual é um consenso entre duas partes”, alerta Melchior.
Para ele, o esclarecimento da população sobre doença gera mais resultados que estratégias punitivas. “A ameaça do vírus deve ser assunto recorrente na TV, no núcleo familiar e nas escolas. Só assim podemos superar o tabu”, conclui.
A Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) também condena qualquer tipo de ligação entre a doença e os homossexuais. “Associar um grupo inteiro a um atributo pejorativo ou até mesmo criminoso é uma situação muito perigosa capaz de gerar estigma e discriminação a grupos vulneráveis”.
A Abia divulgou na segunda-feira (9) nota referente à prática do bareback, ato sexual sem o uso de preservativo. “Entendemos que os praticantes de barebacking, serosorting (escolha do parceiro em função do estado sorológico) ou qualquer outra forma de prazer consentido, necessitam ter acesso à informação e às políticas públicas de prevenção”, afirma a entidade. A associação defende a inclusão e o acesso à profilaxia pré-exposição (PrEP), ou seja, o uso de remédios antirretrovirais, por pessoas que não têm HIV, como forma de evitar a infecção.
A campanha do governo federal para evitar o contágio da Aids tem o seguinte slogan: #partiuteste. O apelo publicitário é claramente voltado ao público jovem. O governo quer incentivar o teste e o tratamento precoce da doença.
Parecer pela rejeição
Pompeo de Mattos garante que o projeto de lei não irá interferir em casos de relação consentida, pois o indivíduo soronegativo sabe do risco que corre de contrair a infecção. O deputado ressalta que a lei não se aplica a relações estáveis. O réu deverá provar a inocência por meio de protocolo médico após a abertura de inquérito. “Estou criando polêmica na Câmara dos Deputados para proteger as pessoas mais frágeis. Essa lei vai ao encontro da causa LGBT”, defende Pompeo de Mattos.
O futuro da proposta, no entanto, é incerto. Nas duas vezes em que esteve para ser votado na Comissão de Constituição e Justiça, o projeto anterior, de Enio Bacci, recebeu parecer pela rejeição. Mas em nenhuma das vezes foi votado. Em 2005, o então deputado Bispo Rodrigues (PL-RJ), um dos condenados do mensalão, pediu a rejeição do texto.
Em 2008, foi a vez de outro parlamentar fluminense relatar contra a proposta. Antonio Carlos Biscaia (PT) considerou o texto constitucional, mas contestou o mérito da proposição. Segundo Biscaia, esse tipo de ato já é coibido de maneira suficiente pelo Código Penal, sem ser um crime hediondo. Os dois relatores também argumentaram que tornar mais severa a criminalização do contágio da Aids pode aumentar o preconceito contra os portadores do vírus HIV.
Apenas para o período do Carnaval, o Ministério da Saúde está distribuindo aos estados de todo país 70 milhões de preservativos. Ao todo, os estados já contam com estoque de 50 milhões de unidades para as ações cotidianas de prevenção, o que inclui o carnaval.
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