Bajonas Teixeira de Brito Junior *
Os EUA têm motivos para desejarem uma guerra na América do Sul?
Sim. E são muitos.
Estariam dispostos a pagar o preço?
É o que parece. Com a ação da Colômbia na invasão do território do Equador, em franco desrespeito ao princípio de soberania, e com tudo o que se seguiu depois, já vimos o quanto podemos estar próximos de um conflito militar. Tal acontecimento seria uma ação inusitada do governo americano? Não. Não seria. Em 2008, o mundo inteiro presenciou o mesmo modus operandi em prática na Geórgia, com os resultados que sabemos. Pouco se fez para esconder que estava em curso uma ação clara, cristalinamente orquestrada a partir do Pentágono e do Departamento de Estado americano.
Existem fortes indícios de um desejo americano de pôr em marcha seus planos na América do Sul?
Eles não faltam. Não haveria da parte americana pudores em derramar enormes quantidades de sangue, de civis e militares de países pobres, para alcançar seus objetivos estratégicos? É possível que não, já que a real politik e a raison d’État continuam a ditar as regras do jogo. Os anos de guerra no Iraque e no Afeganistão demostram isso claramente.
Diante dessas questões, penso que seria importante considerar a natureza dos fatos. Qualquer um que olhe para o cenário com atenção, vê que o caldo está sendo cozido e que os ingredientes da intriga, dos documentos ‘descobertos’, das ‘revelações’ e declarações hostis estão a todo vapor dentro do caldeirão.
O mais recente episódio, ao início deste mês de março de 2009, foram as declarações do ministro da Defesa colombiano, Juan Manuel Santos, sobre o direito da Colômbia de invadir territórios vizinhos, o que resultou na resposta de Hugo Chávez advertindo que responderia com aviões e tanques, ou seja, com guerra, uma violação da soberania da Venezuela.
Consideremos os fatos. Em primeiro lugar, quais seriam as motivações americanas?
Evidente que a maior delas seria que uma situação de conflito aberto, cuja escalada levasse à presença de forças americanas na região, implicaria a ocupação e a montagem de bases permanentes na região amazônica. Este é o primeiro e mais importante ponto. Na atual mitologia geopolítica americana, impera a visão delirante de uma região amazônica infestada com os demônios do tráfico de drogas, das guerrilhas, e da concentração de terroristas que, com mochilas nas costas cheias de urânio enriquecido, só aguardam ordens superiores para alvejar a América.
Além disso, e é compreensível que disso não falem muito, a Amazônia é uma região de riquezas inexauríveis que eles, americanos, não podem usufruir (e preservar) sem antes exorcizar os demônios. Só a parte do mito que se refere a essas "riquezas inexauríveis" tem algum lastro de verdade. O cerne da visão americana é o velho mito satânico de um paraíso terrestre habitado por demônios. Esse mito presidiu a colonização da América desde o início, e o genocídio dos nativos. Considerando a flacidez política de algumas classes dirigentes da região, como é o caso da brasileira, e dos respectivos governos, uma bem-sucedida entrada e subsequente fixação de posições não implicariam maiores contratempos. Seria fácil, rápida e definitiva.
Um segundo motivo, evidente, seria varrer do mapa aqueles governos que desafiam a hegemonia americana na região. Na medida em que os governos americanos sempre tiveram na região como aliados, e interlocutores, as elites mais corruptas e degradadas, mais dispostas a se refestelarem com verbas e financiamentos americanos, e, em razão desses laços de solidariedade, disponíveis para a estrita observância do american way of politics, o surgimento de governos hostis a essas elites — que os americanos não cansam de criticar como corruptas, mas cujo ciclo de corrupção é alimentado por eles mesmos — não é bem-vindo. Tanto na Bolívia, e na Venezuela, seria mais prudente para a política americana aplainar logo as arestas e cortas as asas.
Essas considerações levam a um terceiro motivo, que se refere a Cuba. Se Cuba antes era o espantalho posto pelo inimigo comunista às portas da América, agora é apenas um lembrete de que o domínio americano pode ser contestado e repudiado dentro do seu próprio quintal. Quase dentro da sua sala. Assim, o desmonte dos governos menos adesistas na América do Sul seria muito bem- vindo.
O quarto motivo está na necessidade periódica do complexo tecnológico-militar de desovar suas armas, de utilizar campos de teste para sua letalidade. A indústria militar é um dos carros-chefes da indústria americana. E capitalismo é capitalismo, devendo sua existência às relações de produção, distribuição e consumo. Não importa falarmos de mísseis Patriot ou do uso militar de robôs, eles devem ser consumidos para manter o ciclo de expansão da indústria. A lógica do mercado impõe a necessidade da renovação dos estoques e, no caso das armas, isso se faz através das guerras.
Um quinto motivo é a necessidade estratégica de qualquer poder — seja o de um gangster ou de um império — de renovar periodicamente o temor e o fascínio dos seus comparsas ou súditos. No caso americano, trata-se de manter as duas categorias unidas: comparsas e súditos, a saber, as elites com maior fôlego para o mergulho nas águas profundas da corrupção e da violência, estas que têm até agora detido as rédeas da América Latina. Essas elites parasitárias, se é que não é um disparate aplicar a elas o termo elite, são responsáveis por administrar e manter a miséria em escala colossal nesta região, e é através das demonstrações de força que seus laços simbólicos de subordinação aos americanos são reatualizados.
Críticas às elites corruptas da América Latina, à violência endêmica na região, à violação dos direitos humanos ou da democracia, não são
apenas objeto de estudo de especialistas do Departamento de Estado, mas, embora absolutamente verdadeiras, destinam-se até o presente apenas a servir de instrumento permanente de chantagem, para manter na coleira os velhos cães de aluguel de sempre. Os Estados Unidos precisam dessas elites e, ao mesmo tempo, precisam criticar essas elites, ‘desmascará-las’, em sua corrupção, em sua criminalidade etc. Esse é o jogo de cena. Nos bastidores, contudo, não devemos esquecer que uma das principais fontes de corrupção, parasitismo, criminalidade e abuso contra os direitos humanos são os próprios EUA.
O que se assiste hoje são claros indícios, através dos conflitos da Bolívia e da Venezuela com agências, embaixadores e funcionários diplomáticos americanos, de uma ascensão dos conflitos. Como já apontava há algum tempo o pesquisador Moniz Banderia (artigo Folha de S. Paulo), desde o início foi clara a missão do embaixador Phillip Goldberg de dividir a Bolívia e conspirar pelo aprofundamento da divisão entre a região rica do país — esta das elites corruptas que tanto são criticadas pelos americanos — e as regiões pobres, as maiorias indígenas etc.
A guerra do Paraguai, engendrada pelas ambições do imperialismo inglês, foi um dos eventos clássicos indispensáveis à compreensão do que se tornou a América Latina hoje: seu imobilismo, sua violência endêmica e sua corrupção foram um destino selado por aquela guerra de extermínio.
Não há nenhum motivo para crer que, hoje, os americanos não se aproximam do mesmo desiderato. São as engrenagens do poder, do controle político, do temor de perda de forças que levam a esse resultado. Uma nova guerra sanguinária, envolvendo Bolívia, Venezuela e Equador, de um lado, e, por exemplo, Brasil, Colômbia e alguns outros satélites de outro, dando aos americanos largas garantias de estabelecimentos de bases permanentes na Amazônia não é um cenário improvável. Muito pelo contrário.
Seria, penso, muito mais prudente e estaria muito mais de acordo com seus interesses e suas tradições que, ao invés de enganarem-se a si mesmos, e procurarem enganar os outros, os EUA compreendessem que os governos de Hugo Chávez e Evo Morales são muitos mais afinados com o pensamento daqueles que fundaram a nação americana. São governos que ferem os interesses cancerosos das elites que dominaram por séculos. Exatamente os ferem na justa e clara medida em que ampliam direitos sociais e acessos antes bloqueados aos recursos públicos.
Os americanos farão bem se, a tempo, compreenderem que entre seus interesses mais respeitáveis não há lugar para a fomentação da violência na América Latina. Já nos basta toda a violência do período em que nenhuma ditadura sanguinária se estabelecia nestas bandas sem a benção do Departamento de Estado. É hora de ensinar aos americanos quais são os verdadeiros interesses do povo americano, qual é a melhor forma de ser um americano, e que isto não coincide com os interesses genocidas dos vampiros do complexo industrial-militar da América. Não por ser pouco ouvida em seu país, uma voz como a de Chomsky é menos representativa do que há de mais americano nos americanos. Ao contrário, o apego resoluto à verdade, a aversão a toda violência e o imperativo de inteira sinceridade são traços genuinamente americanos, mesmo que muitos americanos tenham sido preparados para esquecer isso.
Pessoalmente, admiro a cultura americana, não só a cultura literária e filosófica, mas a cultura popular, a música, o cinema, as artes plásticas etc. Sobretudo, admiro o modo próprio como os americanos, em sua história, enfrentaram e resolveram suas questões fundamentais: a escravidão, a corrupção, o domínio dos gangsters, os direitos civis dos negros, e, mais recentemente, o claro enfrentamento da questão da pedofilia dentro da Igreja Católica. Mas temo que hoje a indústria da manipulação tenha chegado a acumular um poder semelhante ao que tinham até setembro de 2008 os bancos e as financeiras. Esse poder acaba de colocar, por graça da cobiça, o mundo inteiro diante do desemprego em larga escala, da redução da oferta de alimentos, e da ampliação de riscos de toda natureza. Será que a racionalidade americana, que gestou essa crise, quer agora uma catástrofe ainda pior, na forma que uma nova área de conflitos, ao lado daquelas do Iraque, do Afeganistão, do Irã, da Coréia do Norte, dos satélites da Rússia, das tribos rebeldes do Paquistão?
Certamente alguns leitores estão se perguntando se ignoramos a mudança na Casa Branca. Não. Sabemos que algo mudou, mas por enquanto não se vê claro na pouco nítida política americana, e ninguém sabe se a Casa Branca vai mudar de cor porque mudou de hóspede. Mas não se trata de um negro? Sim, mas Colin Power e Condoleeza Rice também eram negros. Portanto, que ninguém aposte ainda no auto-engano: nos EUA, a presidência mudou de cor, mas, por enquanto, a casa continua branca. Por quanto tempo ainda, ninguém sabe.
* Doutor em Filosofia pela UFRJ, Bajonas Teixeira de Brito Júnior é professor e pesquisador. Publicou, entre outros, os livros Lógica do disparate (2001) e Lógica dos fantasmas (2008).
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