O pequeno empresário Élio Brito da Silva, de 36 anos, viu a jovem Júlia Liz pela primeira vez em setembro do ano passado, quando ela saía da academia Água Viva, em Agudos – município pequeno, mas bastante desenvolvido, com economia baseada na pecuária e na agricultura, na região de Bauru. Conta também com uma unidade da indústria Duratex, que fabrica produtos de madeira para a indústria de móveis. Élio tinha muitos clientes na cidade. Ficou encantado com a morena alta, de corpo bem delineado pelas roupas da academia. Parou o carro e jogou o seu jogo, na cara dura:
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– Olha, acho você linda. Posso conhecer você? Onde você mora?
A menina de 18 anos encantou-se com a ousadia e com o porte do rapaz. Encontraram-se algumas vezes, até que Élio pediu para ser apresentado ao seu pai.
– Quando ele esteve aqui, veio falar comigo tremendo, mas com toda a educação do mundo – lembra o professor Carlos Rocha.
Publicidade– O senhor me dá licença de conhecer a sua filha? Consultou o pretendente.
– Você percebe a diferença de idade? – questionou o pai da moça.
– Eu percebo, mas, com todo o respeito.
E passou a frequentar a casa do sogro. Formado em administração de empresas, ele tinha uma firma de construção e manutenção de sites em Lençóis Paulista, 28 quilômetros adiante – uma cidade com o dobro do tamanho de Agudos e um pouco mais rica. Com cerca de 250 clientes, tinha renda mensal em torno de R$ 15 mil. Júlia estava terminando o segundo grau e já se preparava para fazer Direito. Foram quatro meses de namoro. Élio costumava visitar a namorada aos sábados. Não tinha filhos, nem casamentos. Já estavam falando em ficar noivos.
Naquele sábado, dia 30 de janeiro, Élio chegou às oito da noite na casa da namorada. Estava num Gol preto muito usado emprestado pelo irmão. Ele tinha um Escort, mas planejava comprar um carro novo no meio do ano. Vestia calça jeans e camiseta justas. Malhava um pouco para manter a forma. Foi cantor da noite quando mais jovem. O estilo preferido era o sertanejo. Tinham combinado de assistir um filme no shopping Alameda, em Bauru, distante 20 quilômetros. Ele adorava cinema, qualquer tipo de filme. Lançamento era com ele. No dia seguinte, comentava o filme com o sogro. Assistiram o filme, comeram uma pizza e retornaram, perto da 1h20 da madrugada.
A mãe de Júlia abriu o portão e conversou um pouco com o genro. A menina entrou, mas logo lembrou que havia deixado a blusa no carro. A mãe foi buscar e viu quando o genro se afastava, em direção a Borebi, distante 15 quilômetros, pela Rodovia da Amizade. De lá, pegaria a Rodovia Marechal Rondon, uma estrada duplicada, bem sinalizada, com ótima pista – uma freeway. Mas o caminho natural, principalmente à noite, seria ir direto pela Marechal Rondon, sem fazer aquela volta. Cheia de curvas, a estrada municipal é perigosa principalmente à noite. Muitas mortes aconteceram ali nos últimos anos. A sogra ficou preocupada.
– O que o Élio tá fazendo, indo por essa estrada a 1h30 da manhã!?
Ele atravessou a pequena cidade e seguiu, passou pelo balão que segue para a SP-273 e tocou para Borebi. Quando começou a descida em direção ao rio Lençóis, havia um cavalete na pista da direita, com uma faixa amarelo e preto. Desviou pela pista da esquerda e seguiu em frente. Ganhou velocidade, passou pela carvoaria, um quilômetro e meio à frente, e chegou rapidamente à ponte. De repente, uma imagem surpreendente e assustadora. A ponte havia sumido. Pisou fundo no freio e as rodas do carro arrastaram por dez metros, inutilmente. O carro mergulhou no vazio e na escuridão da noite.
A busca
Por volta das 8h30 da manhã de domingo, tocou a campainha na casa de Carlos Rocha, que já estava acordado. Eram um primo e um irmão de Élio, Francisco. Perguntaram se Júlia tinha passado a noite com ele.
– Imagina! Minha menina está dormindo desde a 1h30 da manhã. O que aconteceu?
– O Élio não apareceu em casa – explicou Chico.
Carlos pensou: “Alguma coisa aconteceu”.
Chico deu uma informação ainda mais preocupante.
– Olha, tem um obstáculo lá, a ponte quebrou.
– O que, a ponte quebrou? – perguntou Carlos.
Ele pegou o carro e seguiu com os dois até a ponte. No caminho, passaram pelo cavalete com a faixa solta no chão. Já era por volta das 9h30. A ponte, que era um aterro com uma enorme tubulação, havia realmente caído em consequência das fortes chuvas de 12 de janeiro. Não suportou a vazão da água acumulada pelo rompimento de várias represas no municio. Carlos recomendou que os dois pegassem o caminho alternativo para Borebi, que passava por um mosteiro.
– Vai ver tentou fazer o desvio de noite e quebrou o carro – afirmou, com um resto de esperança.
Carlos foi até os bombeiros e falou do acidente. E avisou:
– Dá uma olhada dentro d’água porque pode ter acontecido um acidente.
O bombeiro contestou:
– Imagina! Aquela profundidade lá não dá um metro e meio.
Por volta do meio dia, o irmão de Élio ligou e deu a notícia que Carlos não queria ouvir:
– Um rapaz pulou e percebeu que tem um carro lá dentro.
Os bombeiros voltaram ao local e observaram que a profundidade era de mais de três metros. Já havia uma mancha de óleo bastante grande. Quando voltou pra casa, por volta de meio dia e meia, parou o carro na frente de casa e encontrou Chico.
– Zé Carlos, mergulharam e identificaram que é o carro do Elio. Ele já tá morto.
Carlos ficou com a tarefa de contar para a filha:
– Aconteceu uma coisa desagradável, filha. O Élio sofreu um acidente e faleceu.
A luta para viver
Quando foi até o local do acidente, acompanhado da mulher, o carro já havia sido retirado, mas o corpo não estava mais lá.
– Observamos que o vidro dianteiro estava trincado. Ele foi retirado pelo vidro de trás. Eu acho que, se os vidros estivessem fechados, ele teria tido alguma chance. Morreu afogado. No desespero, ele bateu com a cabeça no para-brisa para tentar quebrar o vidro e sair. Aí, ele desmaiou. No velório, a cabeça estava bem inchada. Ele estava com o cinto e não tinha mais ferimentos no corpo.
Questionado se o genro teria optado pelo caminho alternativo para fugir do pedágio, como fazem muitas pessoas na cidade, negou:
– Não! Quatro reais… Ele era um empresário bem sucedido.
Carlos também descarta a possibilidade de que Élio tivesse bebido:
– Não bebeu e não bebia nada. Um dia, no Natal, ele bebeu uma latinha de cerveja.
Teria sido apenas um capricho do genro.
Mas o acidente que vitimou Élio não foi o único naquele local. Na sexta-feira, dia 29 de janeiro, um caminhão havia caído no rio. Mas o motorista conseguiu sair da cabine. A prefeitura divulgou nos meios de comunicação da cidade e da região que a ponte havia caído. Na passagem da reportagem pelo local, no início de maio, estava sendo concluída a nova ponte – ou melhor, o novo bueiro –, desta vez com duas bocas.
Carlos lembra ainda que o genro gostava muito de ler. Gostava de história.
– Eu tenho uma biblioteca, e ele pedia algum livro emprestado. “Pode levar”, eu dizia. Não teve tempo. Seria um bom marido. Foi difícil, viu?! Não foi fácil para ela.
O professor Carlos fica emocionado e apenas balbucia:
– É, vidas jogadas fora.
Soterrado por telhas
As chuvas de janeiro fizeram mais estrados na região. Cerca de 180 quilômetros ao norte de Agudos, no município de Catanduva, numa noite de sábado, 27 de fevereiro, o motorista Luciano de Oliveira, de 41 anos, vinha de Novais pela rodovia Alberto Lahoz. Por volta das 19h, chegou à ponte sobre o Córrego dos Tenentes, dois quilômetros antes da cidade. Não deu importância às placas que interditavam o trecho e seguiu reto. Mas a ponte havia sumido. O caminhão Iveco/Tector voou sobre o córrego e aterrissou no barranco da margem oposta. A carga de 14 toneladas de telhas rompeu-se e soterrou a cabine.
O motorista ficou preso às ferragens e morreu no local. O trecho estava interditado desde o rompimento da ponte, formada por um aterro e uma tubulação de grande porte. A estrutura não deu vazão à água acumulada pelas chuvas de 14 de janeiro.
A prefeitura afirma que o motorista não respeitou a sinalização, mas havia algo de errado no local. Afinal, aquela foi a quinta morte após a interdição. Em 23 de janeiro, três amigos residentes em Tabapuã, 25 quilômetros adiante, Claudinei Ortega, de 34 anos; Wilson de Souza, de 39 anos; e Ricardo Borges, de 30 anos, foram encontrados mortos dentro de um carro que caiu no córrego. No dia seguinte, os bombeiros encontraram no local, dentro de um veículo, o corpo de Sérgio Semensato Júnior, de 27 anos, morador de Novo Horizonte.
A ponte da morte em Canhotinho
O pedreiro Gilson Brasil da Silva, de 49 anos, vendeu o Corolla usado, inteirou mais R$ 75 mil com a ajuda da mulher e realizou o seu sonho: comprou uma caminhonete Mitsubishi Triton com três anos de uso. Precavida, a mulher avisou:
– Vamos fazer o seguro.
– Não! Só faço dia 8, na ida pra Natal – respondeu Gilson, com seu jeitão teimoso, dia 4 de setembro de 2015, uma sexta-feira.
Mas não deu tempo. No início da noite do dia seguinte, Gilson deixou a sua casa em Angelin (PE), distante 26 quilômetros de Garanhuns, e foi abastecer o carro num posto na entrada de Canhotinho, 12 quilômetros adiante, acompanhado do amigo Wellington Silva. Ele iria para uma festa em Palmeirinha naquela noite. Na ida, passou pela ponte sobre o Rio Canhoto, conhecida como a “ponte da morte”, pelo número de acidentes fatais ali ocorridos. Já havia passado ali muitas vezes.
Na volta, desceu em velocidade alta a ladeira que leva para a ponte, fazendo uma curva aberta à esquerda. Não há quebra-molas na pista. Ainda pouco acostumado com o novo carro, chegou rápido demais à ponte. Ainda se atrapalhou com o farol de um veículo que vinha no sentido contrário e com uma leve saliência na pista. Sentiu que não venceria a curva e fez algo que não deveria fazer naquelas circunstâncias: pisou no freio. Perdeu o controle da caminhonete, que bateu em cheio na cabeceira da ponte.
Com a frente destruída, o carro atravessou a ponte girando, derrubou a guarda de concreto do lado esquerdo e caiu no rio, ainda rodando, numa queda de 12 metros (foto abaixo). A caminhonete caiu em pé dentro d’água, com os airbags inflados. A água começava a encher o veículo. Quando chegaram as primeiras pessoas para socorrê-los, as portas não abriam e a água já estava alcançando o pescoço dos dois. Gilson sentiu uma dor muito forte no peito, resultado da pancada na direção, porque não usava o cinto de segurança, e apagou.
Ponte sem segurança
A ponte é bastante sólida, tanto que tem suportado seguidas pancadas de carros desgovernados, mas apresenta falhas na segurança. É estreita, sem acostamento, não conta com guard rails na entrada e mais da metade das guardas de concreto caíram e não foram repostas. Um policial civil de Canhotinho que já registrou acidentes no local conta que a ponte foi construída há 50 anos, quando ali havia uma estrada de terra. As pessoas passavam a 40 km/hora.
Mas a estrada estadual PE-177 foi asfaltada e transformou-se numa via de acesso a Maceió, pela BR-104. O tráfego aumentou muito. A reportagem registrou no local, em maio deste ano, carros e caminhões carregados descendo aquela ladeira a mais de 100 km/hora. Após vários acidentes, instalaram placas indicando a velocidade máxima de 60 km e, logo em seguida, 40 km. Mas, como não há lombadas eletrônicas no local, ninguém parece preocupado com o excesso de velocidade. Uma lombada no asfalto resolveria o problema, embora pudesse provocar até mais acidentes num primeiro momento.
Pelo menos 10 pessoas morreram ali em cinco acidentes com vítimas fatais nos últimos cinco anos. Uma semana depois do acidente com Gilson, dia 12 de setembro, o motoqueiro Ronaldo Rocha, morador do Sítio Tiririca, no município de São João, a 21 quilômetros dali, desceu pela mesma ladeira, não conseguiu fazer a curva e caiu à direita da ponte, já que não há guard rails no local. Morreu no choque com a laje de pedra embaixo da ponte.
Um mês depois, em 12 de outubro, o ex-presidiário Micael de Sales perdeu o controle do carro, um Corsa 2008, e caiu no mesmo local, levando mais um pedaço da mureta. O carro havia sido roubado no dia anterior em Caruaru (PE), distante 97 quilômetros pela BR 104. Os policiais encontraram no veículo um revólver 38 e uma espingarda calibre 12 carregados.
Naquele sábado à noite, dia 5 de setembro, continuava a luta para salvar Gilson. Pessoas que passavam pela estrada desceram os barrancos, entraram na água e tentaram abrir as portas do carro. Sem conseguir, retiraram os dois pelas janelas. Eles receberam os primeiros socorros do Samu ali mesmo. Wellington sofreu apenas ferimentos leves. Gilson foi levado de ambulância para Recife.
Nova chance
Abriu os olhos alguns dias depois. Ao contrário do que acontece com muitos acidentados, lembrou imediatamente o que acontecera. Chorou muito, segurando a mão da sua mulher, que estava ao lado da cama. Ela esperou ele ficar mais calmo e falou:
– Você nasceu de novo. Dos que caíram ali, só você escapou. Aproveite!
Gilson diz que foi exatamente esse o seu sentimento:
– Sim. Foi um aviso muito grande que o homem lá de cima me deu. Me protegeu bem, primeiro Jesus Cristo, depois o airbag. Todo mundo devia ter. Com o menino que vinha comigo não houve nada, nem no médico foi.
E tenta explicar o que teria provocado o acidente:
– Eu freei na curva, erro meu. O carro anda muito e eu andava muito. Não bebi nada, foi carreira mesmo.
Gilson lembra de outros acidentes no local.
– Ali já morreu muita gente. Caiu até um caminhão carregado com gado.
Ele também aponta possíveis medidas para evitar mais desastres:
– Um semáforo resolvia mais que placa. Iam ver de longe e pensar duas vezes antes de passar correndo.
Ele acabou com as “carreiras” pelas estradas.
– Não quero passar mais não por isso. Não passo mais de 80. Manero mesmo, quem estiver atrás que segure. Só sabe quem passa, e eu sei, triste, triste, triste.
História sem fim
A história terminaria aqui, com o relato do drama e do aprendizado de Gilson. Mas essa história, na realidade, não tem fim.
Quase um mês depois de nossa passagem por Canhotinho, na madrugada de 19 de junho deste ano, por volta das 3h da madrugada, um Fiesta preto lotado desceu o mesmo trecho percorrido por Gilson em direção à “curva da morte”. A família Oliveira seguia para Angelim, retornando de uma vaquejada em São José da Laje (AL). A adolescente Leigila, de 15 anos, ainda comemorava a segunda colocação no concurso “A Mais Bela Estudante de Angelim”, conquistado na noite do sábado anterior, como relata o site local Nova Replay. Mais uma vez, o carro não venceu a curva e despencou da ponte. Morreram o pai, Adelson; a mãe, Irenilda; a filha, Leigila; e mais três parentes.
Popular na cidade, Leigila postava muitas selfs e mensagens às vezes instigantes na sua página no Facebook, com o perfil “Lêêh Oliveira”. No dia 16 de junho, três dias antes do acidente, ela escreveu na sua “Linha do Tempo”: “Só pra lembrar: no final desse filme, a gente morre”.
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