Renata Camargo e Lúcio Lambranho
Apenas três dias após a devolução feita pelo presidente do Senado da MP das Filantrópicas, a Consultoria Legislativa da Casa produziu um parecer técnico que contesta a decisão de Garibaldi Alves (PMDB-RN). O documento, ao qual o Congresso em Foco teve acesso com exclusividade, é assinado pelo consultor legislativo Gilberto Guerzoni Filho. O texto sustenta que o ato de Garibaldi sobre a MP 446 é “inválido”, e faz parte de uma análise de 25 páginas encomendada pelo presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), senador Marco Maciel (DEM-PE).
O parecer foi pedido à consultoria porque a comissão iria julgar o recurso proposto pelo líder do governo Romero Jucá (PMDB-RR) contra a devolução da medida provisória. Mas, na noite de terça-feira (2), o senador retirou sua contestação depois de costurar um acordo político e propor um projeto de lei para substituir a MP, alvo de críticas porque anistia entidades ainda sob a investigação do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF).
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Considerando o ato sem valor, o parecer diz que os efeitos da MP estão valendo até que a proposta enviada pelo Executivo seja votada. “A devolução da Medida Provisória nº 446, de 2008, é um ato inválido e, como tal, nulo, a medida deve continuar a sua tramitação normalmente e seus efeitos jurídicos permanecem em pleno vigor, até a deliberação do Congresso Nacional sobre a matéria”, diz o parecer.
Na prática, a MP está valendo, mas permanece parada no Congresso. Segundo informações da Secretaria-Geral da Mesa do Senado, a comissão mista que deveria examinar a medida provisória foi encerrada no dia 23 de novembro sem emitir qualquer parecer sobre a matéria. Diante do fato, o texto não foi encaminhado à Câmara, permanecendo sem tramitação, até que fosse resolvido o impasse sobre a constitucionalidade da decisão.
A MP 446, que chegou ao Congresso em 6 de novembro deste ano, tem prazo de apreciação de 60 dias, prorrogável por mais 60. Caso não seja votada até meados de março do próximo ano, ela perde a eficácia.
O único episódio de devolução de medida provisória ocorreu em 1989, com a MP 33, que perdeu a eficácia por causa do prazo vencido. Na época, o ato do então presidente do Senado, José Ignácio Ferreira (PSDB-ES), que determinou a devolução da medida provisória que dispensava servidores públicos e extinguia cargos federais, também causou polêmica. Mas o debate a respeito da constitucionalidade do ato foi abafado. O recurso na CCJ não chegou a ser apreciado.
Gilberto Guerzoni disse ao site que há mesmo um impasse regimental na questão, apesar do acordo selado pelo líder do governo. “Do ponto de vista regimental, a MP está parada, se isso é lícito ou não, quem pode decidir é a Justiça. Qualquer parlamentar pode questionar a não votação da MP ou qualquer entidade que se sentir prejudicada por isso também”, resumiu o consultor.
“Pouco apropriados”
Na página 14 do seu texto, o consultor afirma que “permitir que um mero despacho administrativo do presidente de uma das Casas do Congresso Nacional fizesse a medida provisória desaparecer, a qualquer momento, do ordenamento jurídico traduzir-se-ia em gerar a total instabilidade das instituições”.
O consultor diz que os dispositivos do Regimento Interno do Senado, usados por Garibaldi para devolver a MP, os incisos II e XI do artigo 48, são “pouco apropriados” para garantir o ato do presidente do Senado.
O inciso II, segundo o documento, garante ao presidente da Casa a competência para velar pelo respeito às prerrogativas do Senado e às imunidades dos senadores. “É norma meramente programática e somente tem eficácia se combinado com outras que lhe dêem conteúdo”, acrescenta o parecer.
Analisando o inciso XI, que dá poderes para o presidente do Congresso impugnar as proposições que lhe pareçam contrárias às Constituição, Gilberto Guerzoni afirma que o texto do regimento interno não pode ser aplicado a todo tipo de proposta legislativa.
O consultor legislativo também cita um parecer da Secretaria-Geral da Mesa da Câmara, de abril de 2005, como base do seu relatório. O então presidente da Casa, deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), questionou sua assessoria sobre a possibilidade de devolver MPs que não atendiam aos princípios constitucionais de urgência e relevância.
De acordo com o parecer técnico assinado pelo secretário-geral da Mesa, Mozart Vianna, e pelo chefe da Assessoria Técnico-Jurídica da Secretaria Geral da Mesa, Fernando Sabóia, a Casa não poderia devolver MPs “porque elas já produzem efeitos jurídicos imediatos aos serem publicadas”.
Desrespeito
No capítulo que trata dos aspectos formais, Gilberto Guerzoni diz que a devolução da MP, no dia 19 de novembro, foi “totalmente intempestiva”. Ele considera que até o dia 16 do mesmo mês foram apresentadas 268 emendas ao texto do Executivo e que, por isso, o ato do presidente do Senado “pode ser, mesmo desrespeitoso aos 51 deputados e senadores que apresentaram emendas à proposição”.
“Imaginar que isso é possível é aceitar que o presidente do Senado pode impugnar uma proposição qualquer depois de ela ter recebido emendas e, mesmo, ter sido examinada por alguma comissão. Ou seja, significaria dar ao presidente do Senado poderes para interromper a tramitação de qualquer matéria a qualquer momento”, completa o texto do parecer.
Manobra
Na tentativa de evitar que o impasse entre Executivo e Legislativo continue, parlamentares de base trabalham para desviar o foco sobre a constitucionalidade da devolução da MP. “O Jucá já retirou o recurso. Diante disso, a CCJ não tem mais o que avaliar. Não tem como darmos um parecer sobre a decisão do presidente, se não tem mais o objeto [recurso] na comissão”, justificou ao Congresso em Foco o presidente da CCJ, Marco Maciel.
Com o novo projeto apresentado por Jucá na última terça-feira, a expectativa é que a MP 446 caia no esquecimento. “O projeto de lei não tem relação direta com a MP 446. Não sei o que vai acontecer. Só não aceito nenhum desfecho que não tenha amparo legal”, afirmou o senador Aloizio Mercadante (PT-SP). “Mas a avaliação política da decisão do presidente [Garibaldi] não é o mais importante. Tudo vai depender dos desdobramentos”, despistou.
O parlamentar relembra que, em abril de 2005, ele mesmo questionou o então presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), sobre a devolução de MPs. Na ocasião, Renan respondeu que “nem o presidente do Senado, nem o presidente da Câmara, nem o presidente do Congresso têm competência para devolver medida provisória”.
Essa competência, segundo o parecer de Renan na época, caberia somente ao Plenário das duas Casas, com parecer preliminar da comissão mista pelo não-atendimento dos pressupostos de relevância e urgência. “Não houve decisão do plenário. Portanto, a MP 446 não poderia ter sido devolvida”, considerou Mercadante.
Apoio da oposição
A oposição, que desde o início apoiou a devolução da MP da Filantropia – batizada por eles como MP da “Pilantropia” – comemorou a retirada do recurso que contesta a decisão de Garibaldi na CCJ. “Foi uma atitude louvável. É normal contestar a decisão da Mesa. Mas, naquele episódio, o recurso poderia parecer um desafio à autonomia desse Poder”, avaliou o líder do PSDB no Senado, Arthur Virgílio (AM).
Segundo ele, a oposição ainda não avaliou o novo projeto apresentado pelo líder do governo. Mas, como a proposta foi fruto de um acordo entre as lideranças, ele espera que as reivindicações tenham sido atendidas. A principal delas recai sobre a renovação do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas) a entidades filantrópicas suspeitas. Pela MP, todas as entidades com prazo de certificação vencendo este ano teriam a renovação automática, independentemente da situação na Justiça.
De acordo com o projeto de Jucá, as entidades que tiveram certificados renovados em virtude da MP 446 terão os processos reavaliados até 31 de dezembro de 2009, sendo os certificados considerados provisórios até a reavaliação. Caso sejam constatadas irregularidades, os Cebas serão cancelados desde a data de ocorrência da infração. “Podemos apoiar o projeto do Jucá. Com ele, a MP perde o objeto e caduca”, prevê Virgílio.
Vale a política
Oficialmente, a assessoria de Garibaldi alega que o parecer não tem mais efeito, considerando que o recurso contra a devolução foi retirado da CCJ e um projeto de lei pretende substituir a MP 446/2008. Segundo a assessoria do presidente do Senado, a devolução da MP foi um “ato político” contra o excesso de MPs no Congresso. O senador potiguar teria agido sob “risco calculado”, sabendo, de antemão, da fragilidade jurídica do ato.
Além disso, a assessoria avalia que o parecer da Casa só deve inviabilizar outras devoluções de medidas provisórias daqui para frente. Mas, nos bastidores, assessores acreditam que os argumentos do consultor legislativo não são contundentes o bastante e que não devem gerar maiores problemas para o presidente do Senado na Justiça.
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