– Lá vem você de novo falando desse jeito arrevesado… Facilita, benzinho! Eita, que tá difícil…
Tá bom, vou tentar. Mas pra falar do Brasil de hoje eu tenho de buscar inspiração em alguns teóricos que pensaram o mundo, as relações humanas, a economia, a política, a vida social, muito antes de nós. Um exemplo? Pois lhe dou até dois, cheirinho. Ali entre os séculos 15 e 20 o homem desenvolveu o que a gente poderia chamar de um estado “sólido”, em que as certezas dominavam tudo. Acreditava-se que era possível prever tudo, na política e na economia, na tecnologia e nas artes.
Imaginava-se que o homem seria capaz de criar um novo futuro, embasado em instituições sólidas, como o Estado e a Família, com letras maiúsculas. Mas alguma coisa deu errado. As relações são cada vez menos duradoras. Tudo é fluido, imediato. E olha que se pode dizer isso das relações sociais – unidas ou separadas? – com a invasão das redes da internet. Das relações comerciais, com a economia compartilhada…
E até antes disso, as relações familiares já vinham se esgarçando com o enfraquecimento do núcleo familiar tradicional a partir da revolução sexual dos anos 60 e da libertação feminina com a pílula anticoncepcional. Tá me acompanhando, bichinha?
Leia também
– Maomeno. Toca aí.
Esfrie a bacorinha que já explico
Pois voltando ao início: pra explicar o Brasil de hoje a gente precisa do auxílio de pensadores como o polonês Zigmund Bauman, um judeu que fugiu com a família pra União Soviética para escapar dos nazistas, foi soldado do exército vermelho, estudou filosofia, leu textos censurados e foi expulso das forças armadas. Virou crítico do autoritarismo soviético, foi professor na Inglaterra, onde viveu e escreveu um monte de livros e ganhou vários prêmios. Morreu em 2017, com 91 anos.
– Sim, mas o que diabo esse polonês tem a ver com o Brasil de hoje?
Pois sossegue o facho e esfrie a bacorinha com água gelada que eu já lhe conto. Esse cara desenvolveu uma teoria muito legal. Tem uma frase-síntese dele que é o bicho:“Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar.”
– Então, amor eterno, essa história de unidos para sempre, amigos pra toda a vida, fidelidade sem fim, isso tudo é conversa?
Não é béééim assim, mô, mas é quase assim. Bauman diz, por exemplo, que as relações amorosas deixaram de ter formato de união, e a insegurança seria parte estrutural do sujeito pós-moderno. É o que ele chama de “relações líquidas”.
– Ah, entendi. Ele deve ter ouvido essa história de “ficar” em vez de namorar, noivar, casar, né? Vai lá, bim-bim e tchau!
Maomeno, flor. Maomeno. Mas você pegou o espírito da coisa. É por aí. A partir do pensamento de Bauman dá pra explicar da guerra à política, além do amor no mundo de hoje.
Tá ficando parecido com o Brasil
Antigamente a guerra era um exército lutando com outro e quem matasse mais ganhava, né? Hoje esculhambou tudo. O terrorismo, essa guerra moderna, acontece em toda parte, não tem exércitos regulares, é difícil definir quem está do nosso lado e até saber direito quem é o inimigo. É a “guerra líquida”. Impossível caber quem está ganhando ou perdendo.
– Tá começando a parecer com o Brasil…
Pois é. Estamos chegando lá. Na guerra que acontece nos morros cariocas, quem é o mocinho e quem é o bandido? Para Bauman, já que o homem moderno não pode confiar no futuro, concentrou tudo no presente, no instante e no indivíduo. A publicidade manda você viver o “agora”. E “pensar em si mesmo”. O prazer é instantâneo. E egoísta. Nas artes, a profundidade foi substituída pela superficialidade. Tudo é pra consumo imediato, sem pensar!
– Sim, tá. Mas, e no Brasil?
Política brasileira: uma zorra líquida
Pois você não está vendo, minha rosa? No Brasil de hoje ninguém tem certeza de nada, não pode prever o que vai acontecer até amanhã de manhã. Nesta zorra líquida em que se transformou a política brasileira, as últimas pesquisas mostram uma inclinação forte pelo Bolsonaro, com a saída do Lula. O resto dos votos está pulverizada em Marina, Barbosa, Ciro e o resto.
E o eleitor diz que não quer saber de futuro, quer saber de quem possa resolver tudo agora. Como as certezas se acabaram, as conveniências políticas falam mais alto do que as ideologias, que já não explicam nada, o que vem ocorrendo é uma liquefação da política em sua forma clássica. E quando acontece isso, o que sobra é… vale-tudo! E o risco de um salvador da pátria desses aí tomar o poder. E pelo voto!
– Eu acho que já entendi, mô. Desculpa, mas tá me dando uma sede… Vamos tomar algo líquido? Saiu uma cerveja nova que eu tô doida pra conhecer. Novidade é comigo mesmo. Mas tem de ser agora! Agora!
O Bauman confirma isso que você está dizendo, flor. Segundo ele, o homem moderno trocou tudo pela novidade da hora. É tudo “here and now”: aqui e agora, como essa sua cerveja. Pois vamos a ela. Aqui e agora. Depois a gente vê o que vai fazer. Curioso: parece que a gente tá falando é do Brasil…
– Parece mesmo. Mas nosso amor é sólido e eterno, líquido é só o Brasil, né?
Maomeno, flor, maomeno…
Do mesmo autor:
<< Olho por olho e dente por dente num país de cegos e desdentados
<< “Fake news”: qualquer coisa é melhor do que diabo de nada
Deixe um comentário