“O Brasil precisa de reformas.” A frase foi proferida pelo senhor Michel Temer, triste ocupante do Palácio do Planalto. “Reformas [no Brasil] são claramente necessárias.” Essa frase foi proferida pela senhora Christine Lagarde, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI). O homem das mesóclises sofríveis e a mulher das certezas incertas estão com a razão?
Os contínuos escândalos de corrupção criam a falsa impressão de que a honestidade (ela, e só ela) daria “jeito” neste país. Felizmente, ou infelizmente, nossas profundas mazelas, notadamente a construção e manutenção de uma das sociedades mais desiguais, discriminatórias e violentas do planeta, resultam da existência de instrumentos ou mecanismos socioeconômicos que precisam de profundas transformações.
Essas transformações, se adotada a denominação de “reformas” neste momento histórico, devem seguir em qual rumo ou sentido? O caminho apontado pelo governo Temer-Meireles-Padilha, mergulhado em corrupção e fisiologismo, é aquele a ser trilhado e apoiado pela maioria da população brasileira?
A resposta pode ser encontrada, entre outros, na Constituição de 1988. Esse documento, fundador do atual Estado Democrático de Direito, fixa os seguintes objetivos fundamentais para a República Federativa do Brasil: a) construir uma sociedade livre, justa e solidária; b) garantir o desenvolvimento nacional; c) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e d) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Leia também
Para que os fins destacados sejam alcançados, o constituinte definiu os traços mais relevantes dos instrumentos fundamentais a serem utilizados. Assim, conformou o modelo de Estado e sociedade a serem desenvolvidos no Brasil. Entre outros pontos relevantes: a) indicou a educação e a saúde como direitos de todos e deveres do Estado; b) desenhou um avançado sistema de seguridade social, incluídas as proteções previdenciárias e assistenciais e c) cuidou de estabelecer importantes mecanismos de financiamento das políticas públicas nessas e outras áreas.
A ambiciosa rede de proteção social concebida e organizada pelo constituinte, baseada na solidariedade social e visando o bem-estar de todos, está centrada na titularidade e efetiva fruição de uma série de direitos sociais, qualificados constitucionalmente como fundamentais. Exatamente no dispositivo que enuncia os direitos fundamentais dos trabalhadores, a Constituição afirma categoricamente que outros direitos, além dos listados, deverão ser adotados para “a melhoria de sua condição social” (artigo sétimo).PublicidadeResta, portanto, fora de dúvida que vivemos numa sociedade (e Estado) onde os direitos, notadamente sociais fundamentais, devem ser assegurados e ampliados. A Constituição não tolera o retrocesso social. O constituinte não admitiu a degradação da condição social dos trabalhadores com limitações e restrições de seus direitos.
O governo Temer-Meireles-Padilha, como claro instrumento dos interesses mais mesquinhos do empresariado do agronegócio, da indústria, do comércio e da área financeira, adota rumo diametralmente oposto ao indicado pelo Constituinte de 1988. A busca frenética pela eliminação e restrição de direitos sociais está presente: a) na proposta (aprovada) de fixação de um teto draconiano de gastos primários (e ausência de limites para as despesas financeiras); b) na nova legislação sobre terceirização (e precarização) da força de trabalho; c) na reforma trabalhista (parcialmente aprovada) que, entre outras maldades, determina a prevalência do negociado sobre o legislado (“para pior”) e d) na reforma previdenciária, que contempla um festival de redução de direitos.
As verdadeiras reformas, aquelas de caráter democrático e popular, devem buscar, como dito, a manutenção e ampliação de direitos, em especial os sociais fundamentais. Para tanto, as seguintes e perversas (em função das consequências sociais produzidas) realidades nacionais reclamam “reformas”:
a) a sonegação tributária, estimada em R$ 500 bilhões anuais, precisa de atenção e ataque planejado e organizado;
b) a Dívida Ativa da União e de suas autarquias, mediante uma recuperação progressiva decorrente do adequado aparelhamento dos órgãos públicos envolvidos, notadamente a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Procuradoria-Geral Federal. O estoque dessa dívida ultrapassa a cifra de R$ 1,5 trilhão;
c) os benefícios (ou exonerações) tributárias. Segundo levantamento especializado, “as desonerações de tributos concedida pelo governo da presidente Dilma desde 2011 somarão cerca de R$ 458 bilhões em 2018”;
d) a Seguridade Social, por intermédio de uma ampla e democrática auditoria que aponte as reais necessidades de modificações (envolvendo o financiamento segundo os parâmetros constitucionais, as desonerações tributárias, a sonegação, a inadimplência em razão da crise econômica, as fraudes, os privilégios, a pertinência de alterações nas idades mínimas e outros aspectos relevantes);
e) a dívida pública, via auditoria conforme exige o art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e implementação de uma administração transparente e com controle social, inclusive com a supressão de mecanismos indevidos que viabilizam o seu contínuo crescimento (como a atualização monetária do montante e o seu financiamento por intermédio do lançamento de novos títulos em flagrante violação à “regra de ouro” inscrita no art. 167, inciso III, da Constituição). Observe-se que a evolução da dívida pública mobiliária federal interna não encontra nenhuma explicação nas diferenças positivas e negativas do resultado primário (desconsiderada a parte financeira) nos últimos vinte anos. O patamar desse endividamento saiu de R$ 61,7 bilhões em 1994 para R$ 2.753,4 bilhões em março de 2016. O problema da dívida pública monumental e crescente não tem fundamento na vertente fiscal da economia brasileira, como pretende o discurso oficial e da grande imprensa;
f) a política monetária. Compreendendo uma regulamentação ampla e social: f.1) da fixação da taxa de juros Selic; f.2) do nível e administração das reservas monetárias internacionais (admitindo a venda do excesso, inclusive); f.3) do tamanho da base monetária e f.4) das operações compromissadas e todas as formas de “ajuste de liquidez”. Segundo dados do Banco Central do Brasil, as operações compromissadas representavam R$ 528,7 bilhões da dívida pública em dezembro de 2013, R$ 809,06 bilhões em dezembro de 2014, R$ 913,28 bilhões em dezembro de 2015 e R$ 1.113,97 bilhões em agosto de 2016;
g) a política cambial. Envolvendo uma regulamentação ampla e social: g.1) do câmbio; g.2) do fluxo de capitais e g.3) das operações de swap cambial;
h) o sistema tributário, mediante a drástica redução da tributação sobre o consumo e aumento das tributações sobre a propriedade, capital e aplicações financeiras, inclusive com a eliminação de privilégios fiscais;
i) a concentração de mídia, por intermédio de uma profunda democratização econômica (sem interferência na “redação” ou linha editorial) da propriedade das empresas de comunicação;
j) a estrutura fundiária, na linha de sua radical desconcentração;
k) a reorganização administrativa do Estado que viabilize: k.1) a profissionalização do serviço público; k.2) a quase extinção de cargos comissionados; k.3) o atingimento de níveis satisfatórios de qualidade na prestação dos serviços públicos; k.4) o controle social sobre o funcionamento e os resultados da atuação administrativa; k.5) a fixação de padrões remuneratórios compatíveis com a realidade socioeconômica; k.6) o combate as diversas formas de privilégios espúrios e k.7) a construção e fortalecimento de mecanismos efetivos e preventivos de combate à corrupção;
l) a organização político-eleitoral em novas bases, contemplando: l.1) a manutenção da impossibilidade de financiamento de campanhas e partidos por empresas; l.2) a adoção do financiamento público de campanhas em patamares espartanos, incluídas nessas restrições o fundo partidário; l.3) a definição clara, sem anistias, da criminalização do caixa 2 em campanhas eleitorais; l.4) a eliminação das coligações nas eleições proporcionais, inclusive mediante formas disfarçadas (como na federação de partidos e assemelhados); l.5) a adoção de fórmulas de revogação de mandatos por parte dos eleitores; l.6) a democratização do cálculo do coeficiente eleitoral e a distribuição dos restos nas eleições proporcionais; l.7) a adoção do procedimento de voto proporcional primeiro no partido e, depois, num dos candidatos do partido e l.8) a democratização da distribuição de tempo na propaganda eleitoral e a participação em debates.
Observe-se que quase todas as questões destacadas não são veiculadas pela grande mídia. Todos os problemas nacionais parecem concentrados e limitados aos aspectos estritamente fiscais dos gastos com a previdência social e remunerações de servidores públicos e aos escândalos de corrupção. Opera-se, notadamente nas telas dos televisores, uma engenhosa redução do mundo percebido pela quase totalidade da população. Afinal, se quase todos sequer tomam conhecimento das questões antes levantadas, as mazelas e suas soluções devem ser buscadas no universo parcial, cuidadosamente recortado e apresentado pelos grandes meios de comunicação.
O único caminho factível, mesmo lento e trabalhoso, reside na intervenção popular (não confundir com a tresloucada intervenção militar). Somente a mobilização e conscientização populares, em torno de medidas efetivamente transformadoras, mudará o Brasil. Trata-se de atuação que não pode, nem deve, ser terceirizada (para representantes de qualquer tipo, líderes “esclarecidos” ou “salvadores da Pátria”). A força motriz das mudanças de fundo, sem prejuízo de combativos e comprometidos representantes e lideranças políticas como seus instrumentos, deve estar centrada na cidadania ativa, no protagonismo da atuação de cada cidadão nos mais variados espaços sociais.
Deixe um comentário