“Não podemos mudar aquilo que não aceitamos.” Carl Jung
Logo depois da famigerada absolvição da chapa Dilma-Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com o acintoso sofisma de seu presidente de que desconsiderar as provas em excesso dos crimes de abuso de poder econômico e político dos acusados era um imperativo de responsabilidade política, cheguei à conclusão de que o ministro Joaquim Barbosa estava certo quando chamou Gilmar Mendes de “destruidor da Justiça brasileira”.
Diante de tal contorcionismo juris-político, e ainda zonzo com tamanho deboche em face dos cidadãos de bem, me lembrei do clássico Bandeirantes e pioneiros, do grande Vianna Moog. Queria reler o que faz realmente em nossa subcultura política as motivações de conquistar e predar suplantarem as de colonizar e construir a nação. Quando parecia que estávamos retomando a trilha da construção democrática nos vemos nos últimos anos descarrilar para o pântano da demagogia e barbárie.
Há mais de meio século sabemos de nossas mazelas depois de uma série formidável de intelectuais brasileiros que fizeram a completa exegese cultural de nossa nação. Cabe lembrar que Vianna Moog escreveu na década de 50, aprimorando uma tradição de grandes intérpretes de nossa cultura, como os mestres Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Holanda. Mas, e agora? Depois de ditadura e redemocratização, e uma geração inteira experimentando sem pejo as diferentes motivações culturais entre brasileiros e americanos, o que nos falta para superar nossas limitações histórico-culturais, se não nos reunirmos como verdadeiras elites? Reunião, como as típicas conventions, no dizer de Vianna Moog, tão corriqueiras na América e tão raras no Brasil.
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Se o objetivo de educar a massa está patinando, atalhemos pela educação política das elites. Enfrentemos o gap cultural entre ser plenamente alfabetizado na América, mesmo que para ler a Bíblia, e não sê-lo no Brasil, uma vez que a tradição do catolicismo tutela os fiéis pelo encantamento imagístico. Se saxões protestantes apostaram na tipografia de Gutemberg, os latinos apostaram nos incunábulos, vitrais e catedrais deslumbrantes. É diferente conquistar para El Rey e colonizar para seu próprio povo, nos ensina Vianna Moog. Mesmo que Lutero intencionasse apenas reformar o catolicismo, com a extinção das indulgências, Calvino foi além ao criar uma nova Igreja que ousava a extinção do pecado da usura, leitura tosca da tradição judaica!
Se os bandeirantes saquearam o ouro para a construção de estranhas catedrais das metrópoles, os pioneiros construíram bancos para emprestar a juros e voltar a investir em fazendas, gado, estradas de ferro e indústrias. Se calvinistas puritanos imigravam com toda a família, preservando às claras a discriminação racial dos autóctones, nós herdamos a orfandade atávica de pais predadores de índias e escravas.
Para além de mestiços, fomos no máximo mazombos, que em banto é o depreciativo donzelos, discriminação mais sutil entre os portugueses reinóis. Os americanos, por conta de seu pragmatismo, são governados por seus falíveis concidadãos. Enquanto os mazombos o são pelos reinóis da metrópole e seus augustos antepassados, segundo recomendava Comte na doutrina positivista. Logo após o golpe da República sucederam-se presidentes brasileiros, como eram chamados os exploradores do pau brasil, e não mais brasilienses, castiço gentílico do nativo do Brasil.
E o que nos legou a República, depois de expatriarmos o nosso primeiro Pater Patriae, D. Pedro II, justamente o primeiro governante nativo, se não tentar nos impor governantes padrastos de uma ordem & progresso sem princípios em prol de um futuro apenas desejado? De lá para cá, a cultura desandou vazia do princípio maior do amor-justiça, e trocamos a doutrina do conservantismo liberal do Império pelas doutrinas progressistas-socialistas barrocas e românticas.
Se somos mazombos intelectuais bacharelescos e vacilantes, nossos irmãos do norte são industriosos criadores de utensílios produtivos, muito embora o projeto de D. Pedro II e de Abraham Lincoln fosse rigorosamente o mesmo: a unificação nacional!Mas culturas, estúpido, são inteiramente diversas! Vianna Moog nos dá alguns exemplos sensíveis, como a questão da tradução da oração do Pai Nosso latino, cujo perdão das dívidas é concreto como um contrato fiduciário, ao invés do perdão dos pecados morais, como condenação a priori da usura e desvirtuamento da lei mosaica. O que nos legou a dificuldade econômica, no trato com a realidade, e legitimou os juros que viabilizou a capitalização calvinista-puritana da América!
E seguem-se os demais paralelos culturais entre o bandeirante conquistador e o pioneiro colonizador, o senhor de engenho como o farmer sulista escravagista, e o jesuíta como o preacher calvinista anti-escravagista e dignificador do trabalho!
Cita Capistrano de Abreu, que já na sua obra O Descobrimento do Brasil, atestava que, na primeira metade do século XVI, não chegam mulheres brancas juntamente com os conquistadores portugueses. Daí a mestiçagem com as índias, já oferecidas aos hóspedes como da tradição tupi e a justificação de Gaspar Barléu de que não existe pecado abaixo do Equador. Daí, para a orfandade do pai, e de tudo o que isto significa, como dificuldade de admissão da lei e da idealização da mátria, foi questão de tempo!
Assim como a consolidação de vários outros e distintos traços. Se na América predominam o rompimento com o passado, a discriminação racial, o puritanismo, a crença na bondade natural do homem e no aperfeiçoamento de sua conduta moral, a busca do êxito pelas virtudes econômicas, no Brasil predominam a indiscriminação racial explícita, o anseio pela riqueza rápida, o apego ao passado, a vitória do material sobre o espiritual, o individualismo exacerbado, o preconceito contra a organização do trabalho, o desprezo pela condicionante moral e pelas virtudes econômicas.
Mas se fôssemos priorizar a grande ruptura entre os dois paradigmas culturais, sem dúvida alguma seria o afastamento da crença na natureza pecaminosa do homem, a supremacia da concepção socialista-utópica de Rousseau sobre o realismo hobbesiano.
E tem sido essa a nossa pirâmide étnico-social: reinóis, mazombos, mulatos e mamelucos, curibocas e escravos. Com ela, nascem os ressentidos da lei mal dissimulando o ódio de um pai senhor rejeitador, uma sinhazinha falsa madrasta, casa e comida de favor, e uma eventual genitora violentada. Com ela, nascem os costumes de tudo esperar de mágico de governos e padrinhos, o desprezo pelo trabalho, a irresponsabilidade civil, o apego nostálgico ao passado e falta de iniciativa empreendedora.
Ao contrário dos espanhóis que encontraram muito ouro quase no litoral do Pacífico, foi a busca no interior que fez os portugueses bandeirantes alargarem o vasto território da colônia do Brasil. Ultrapassar as serras litorâneas atrás do ouro foi uma peripécia e tanto, jeito de contornar, vencer a natureza pela paciência, tatear, compor, dissimular, costear os alambrados. Daí, o célebre jeitinho, expressão definitiva de nosso caráter barroco de compor contrários numa única peça como o côncavo-convexo da escultura e arquitetura colonial mineira. Torcer as leis, distorcer princípios, contorcer valores!
Puro barroquismo cultural que não existe na América, seja como atenuante para enfrentar a dureza da vida, seja como agravante para justificar a delinquência atávica! Como sempre digo, nada é pão-pão queijo-queijo na terra do pão-de-queijo, que não é puro pão, tampouco queijo. Para nossa luxúria de quitutes e pobreza de atitudes!
E pensar que Vianna Moog escreveu este clássico de nossa identidade cultural em início dos anos 50, antes dos novos bandeirantes do século XX erguerem uma cidade inteira como Brasília, dita moderna na forma, mas tirânica na sua essencial distância, só para saquear o erário longe da vista e do alcance dos cidadãos eleitores e pagadores de impostos!
Não é por outra que seu traço modernista peculiar, da lavra do socialista Oscar Niemeyer, faz a opção pela retomada das curvas barrocas da tradição latina, ao contrário do retilíneo modernismo do Bauhaus alemão ou do Stijl holandês.
Por fim e no clímax de seu ensaio, Vianna Moog faz um paralelo entre nossas heroicas figuras: o cultuado Abraham Lincoln e o quase esquecido Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, nosso magnífico mestiço, filho de português com uma escrava, a expressão máxima da união de contrários, o barroco em carne e espírito. E que inaugurava uma sucessão de mestiços brilhantes como o compositor Padre José Maurício Garcia, os escritores Lima Barreto e Machado de Assis, os arquitetos André e Antônio Rebouças e tantos outros. Todos desprotegidos de cotas de inclusão racial ou quaisquer outras políticas de ação afirmativa…
O que nos faz concluir mais uma vez que não há outra alternativa para o país sair da encruzilhada em que se meteu e que é cultural em seu âmago. Temos de resgatar e reunir as verdadeiras elites sociais brasileiras para a ocupação da cena política e expulsar as organizações criminosas que tomaram conta do Estado brasileiro. Esta é a missão civilizatória! A oportunidade histórica de enfrentamento de nossa própria natureza. Temos de aprender a nos reunir os que se julgam elites pensantes, como proponho no curso sobre o programa de Agentes de Cidadania.
Pois, como concluía Vianna Moog no século passado, “mais do que a reforma política, tributária, agrária, previdenciária, trabalhista, administrativa, constitucional, federativa, todo tipo de reforma de que o Brasil precisa, o que realmente falta é a reforma cultural do interior dos espíritos, da consciência ética, sem a qual permaneceremos um país à míngua, que não se enobrece, sem espírito público, iniciativa moral, à espera que taumaturgos chefes de bandeiras providenciais venham a nos salvar.”
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