Uma imagem que ficará para sempre na história deste 29 de maio é a da vereadora do Recife Liana Cirne mostrando a carteira da Câmara Municipal a policiais durante a repressão ao ato pacífico por vacinas, comida no prato e contra o governo Bolsonaro na capital pernambucana. Por causa disso, ela recebeu um jato de spray de pimenta no rosto e caiu no chão, machucada.
O ataque à vereadora foi um ataque a todas as parlamentares e a todas as mulheres defensoras de direitos desse país. Naquele momento, ela representava o Brasil das mulheres que resistem ao fascismo, que encaram com coragem, todo dia, os tantos retrocessos que o país enfrenta, inclusive o da diminuição do espaço cívico e a destruição das políticas de participação social, que enfraquecem a democracia.
Não é novidade afirmar que o sonho de sociedades pacíficas e inclusivas, como previsto na Constituição Federal e no Objetivo 16 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, fica mais distante a cada minuto que Jair Bolsonaro permanece na presidência da República.
Talvez a novidade seja começar a dar o merecido espaço para as mulheres que, na linha de frente, resistem. E não tenho dúvidas: enquanto o governo federal, majoritariamente composto por homens brancos e sexistas, e parlamentos de vozes masculinas – o Brasil é o 140º país em representação feminina no Legislativo – seguem falhando no cumprimento de seus papéis, são as mulheres que tomam para si a responsabilidade de agir nos momentos mais difíceis.
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É preciso dizer que a passeata no Recife foi cuidadosamente organizada, saindo da Praça do Derby em filas indianas, respeitando os cuidados de distanciamento físico. Diferentemente dos grupos bolsonaristas que aglomeram e violam todos os protocolos sanitários estimulados pelo exemplo do próprio presidente da República, seguimos as medidas de prevenção à Covid-19.
Caminhamos munidas apenas de cartazes, mascaras e álcool em gel, sem imaginar que nos depararíamos com a ação covarde e violenta da Polícia Militar de Pernambuco. Estávamos exercendo nosso direito constitucional à livre manifestação do pensamento, à reunião e ao protesto, também previsto em todas as legislações internacionais de direitos humanos.
Inacreditavelmente, fomos recebidas com gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha que podem, inclusive, ser letais. Nas imagens que mostro nesse vídeo, é possível ter uma ideia do que só quem estava lá viveu, com as pessoas perseguidas e a polícia nos encurralando sem qualquer justificativa. Dois homens que nem participavam do ato foram atingidos nos olhos por balas de borracha e perderam parte da visão. E não adiantam as falsas narrativas. Com vídeos e fotos provamos que sim, fomos atacados e atacadas covarde e gratuitamente. Eu, que fotografava, precisei até chutar para longe as capsulas de gás lacrimogêneo. Tive que correr da polícia como se não vivesse em um Estado de direito ou em um país democrático.
Não foi fácil ver aquele ato pacífico e construído com tanto cuidado ser dispersado truculentamente e as ruas nas proximidades virando praças de guerra. A sensação de vulnerabilidade era imensa, enquanto os ataques seguiam mesmo quando as pessoas se retiravam, pacificamente, para voltarem às suas casas. Foi o que aconteceu com as minhas companheiras da Gestos, a enfermeira Nise Santos e a psicóloga Juliana Mazza, que receberam spray de pimenta e bombas atiradas pelas viaturas contra elas e um grupo de pessoas que aguardava o ônibus na parada. Detalhe: nesse grupo havia crianças e pessoas idosas e a maioria das pessoas sequer estava na manifestação. Tudo isso justo ao lado da Faculdade de Direito de Joaquim Nabuco, Tobias Barreto e Ruy Barbosa. Elas correram e foram ainda perseguidas nas cercanias da Assembleia Legislativa, a casa do povo pernambucano. Quanta ironia, não?
Mas mulheres corajosas como elas resistem. Mulheres protestam, defendem direitos e acolhem. Elas não deixam ninguém para trás. E, mesmo sob perigo, voltaram para ver o ocorrido. Bem a tempo de Nise poder socorrer uma senhora que havia sido atingida e se encontrava em estado grave. Assim como Liana, foi mais uma a cair no chão.
O governador Paulo Câmara lamentou tardiamente o ocorrido, afirmando ter determinado imediata apuração de responsabilidades. Mas, até o momento em que concluo este artigo, ele ainda não informou quem deu a ordem para a PM nos atacar. E se a ação não foi autorizada pelo Palácio do Campo das Princesas, foi autorizada por quem? Há, então, uma ala ideológica na polícia pernambucana que não respeita hierarquias? O caso de Pernambuco, onde o governo nem é bolsonarista, é grave, muito grave, e precisa ser apurado com seriedade. Não estamos numa ditadura e não admitiremos violência policial e repressão em protestos legítimos.
Toda essa operação desastrosa mostra que o Brasil, já minado pelas milícias que têm no presidente do país seu maior defensor, está ficando refém também das polícias (paralelas?) que deveriam proteger a população. É normal um perfil não oficial da Rocam no Instagram postar vídeos das agressões a manifestantes dizendo que estavam “Combatendo o comunismo”? Considerando também o ocorrido no Ceará em 2020, os governadores estão perdendo o controle de suas polícias?
A situação tende a ficar mais perigosa se providências não forem tomadas, com o recrudescimento generalizado do fascismo nas forças de segurança em todo o país, fragilizando ainda mais as instituições que deveriam estar nas ruas para nos proteger. E isso pode custar mais vidas, inclusive das mulheres defensoras de direitos humanos.
Mas não temos medo. Não pactuaremos com a política beligerante em curso e discordamos veementemente de que as diferenças se resolvem na bala. As pessoas continuarão a reagir e, enquanto faltarem vacinas, trabalho e comida no prato das pessoas que mais precisam, voltaremos às ruas. .
O nosso recado foi dado, com atos em 170 cidades de 20 estados e no Distrito Federal e não arredaremos um milímetro das nossas convicções, porque não agir contra esse governo é mais perigoso do que o próprio vírus.
Enquanto o Congresso continuar sem analisar os mais de 100 pedidos de impeachment, travados por Arthur Lira, e enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) não julgar a notícia-crime 9020, que denuncia Jair Bolsonaro pelo crime de genocídio, a resposta continuará nas ruas, onde caminharemos livres, em protesto e em uníssono, construindo a resistência como tem que ser.
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