João Peres e Tadeu Breda*
O acalorado debate sobre os aplicativos de serviços de transporte tomou o rumo errado – ou, como disse a Uber certa vez a uma passageira raptada por um de seus “motoristas-parceiros”, adotou uma “rota ineficiente”. A polarização entre taxistas e trabalhadores de aplicativos é o cenário dos sonhos para a megacorporação que, como estamos vendo agora, no Brasil, não é nem moderna, nem democrática.
Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, no último dia 24, o advogado Daniel Sarmento afirmou que a “bolorenta reserva de mercado dos taxistas” tenta “capturar” órgãos estatais. Teria sido de bom tom contar ao leitor que Sarmento foi contratado em 2015 pela Uber para redigir um parecer. Mas exigir transparência quando se fala das empresas líderes da cada vez mais poderosa “economia dos bicos” é cobrar demais. Mundo afora, essas corporações se recusam a fornecer informações básicas sobre sua atuação, quando não falsificam diretamente dados e algoritmos para burlar regulações democráticas.
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Mais importante do que observar o discurso da Uber é entender o que a empresa prefere deixar de fora do debate. A ideia de se apresentar como uma humilde força inovadora que vem para somar à sociedade e derrubar interesses arraigados não sobrevive ao exame da própria trajetória da Uber, e aos números envolvidos nesse processo. A campanha #Juntos pela mobilidade é uma sofrível tentativa de se apresentar como nossa parceira por uma vida melhor.
PublicidadeA empresa criada em 2009 atingiu recentemente um valor de mercado de US$ 69 bilhões, mais do que muitas montadoras e infinitamente maior do que qualquer companhia de táxi. É difícil falar em livre concorrência quando o caminho à liderança do mercado em vários países é erguido sobre investimentos de capital de risco de US$ 11,5 bilhões. A Uber opera no vermelho enquanto busca impor o monopólio sobre os lugares em que atua. Quando o alcançar, poderá fazer livre uso de seu “preço dinâmico”, que já foi utilizado para ampliar em sete ou oito vezes as tarifas de cidades atoladas na emergência de nevascas.
A empresa gosta de se apresentar como “disruptiva” e coloca-se como porta-voz de uma nova economia em que o compartilhar é mais importante que o possuir. Como adverte o pesquisador britânico Tom Slee no recém-lançado Uberização: a nova onda do trabalho precarizado (Editora Elefante), a tecnologia é apenas uma ferramenta para maximizar lucros, transferindo aos trabalhadores os custos de toda a operação. Então, quando falamos de um modelo de negócios que está se estendendo a todos os setores da economia, em definitiva a regulação não é uma questão menor, ou a defesa de interesses arcaicos. Trata-se de tentar resguardar um mínimo de dignidade.
Nos Estados Unidos, a Uber fez circular um relatório que dava conta de que um motorista em Nova York ganhava US$ 90 mil ao ano. A imprensa começou uma busca por esse motorista, logo apelidado de UberCórnio, uma criatura mágica – e fictícia. Tom Slee fez os cálculos e chegou à conclusão de que, descontados todos os custos, sobra ao trabalhador em torno de US$ 30 mil ao ano, média do que ganham os taxistas na cidade. Qualquer pessoa que utilize os serviços e tenha conversado com os motoristas chegou a alguma conclusão parecida: o trabalho é tão extenuante, perigoso e mal-remunerado quanto o de um taxista.
A extensão do sistema de aplicativos a outras áreas de serviços, como se pretende, ameaça “uberizar” milhões de brasileiros. A Uber faz vender o emprego dos sonhos: sem patrão, dirige-se quando quiser. Mas a própria empresa gasta milhões no desenvolvimento de sistemas que mapeiam e direcionam o comportamento do motorista. Não foram poucas as revelações nesse sentido. O New York Times mostrou como o aplicativo passou a empurrar os trabalhadores a certas áreas da cidade e a criar mecanismos que esticam mais e mais a jornada.
A ideia de que os sistemas de reputação – as estrelinhas que motoristas e passageiros dão uns aos outros – substituem com perfeição a regulação é também falaciosa. Dar uma estrela em vez de cinco após sofrer um estupro ou ser roubado certamente não resolve a questão. Mundo afora, a empresa tem lavado as mãos diante de problemas graves, ou seja, crimes, que têm acontecido com frequência.
É difícil ignorar a necessidade de regulação diante da empresa que afirmou que poderia aumentar a fatia que toma dos motoristas simplesmente porque quer; que estimulou seus “parceiros” a enfrentar e desrespeitar leis e normas democráticas em várias cidades; que é acusada de roubar dados da concorrência; que teve acesso à tela de celular dos usuários durante anos, como revelou a Apple; que tardou a responder a denúncias de abuso sexual envolvendo diretores; que montou uma enorme rede de lobby nos Estados Unidos.
A notícia de que o presidente-executivo da empresa decidiu visitar o Brasil em meio aos debates no Congresso só mostra a importância que o país ganhou para uma empresa que vê a imagem arranhada dia após dia. Os investidores precisam de retorno sim ou sim e, para isso, quanto menos regras, melhor. Mas uma regulação sensata não é pedir muita coisa. Ter acesso aos dados sobre número e localização de motoristas é o mínimo que o poder público precisa para regular a densidade dos serviços. O excesso de carros é nocivo para o trânsito e para os motoristas, que acabam obrigados a leiloar cada vez mais barato sua mão de obra. O cenário futuro propiciado pelos aplicativos é devastador para o trabalho.
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Nas semanas que antecederam a votação decisiva no Senado, várias cidades brasileiras regulamentaram os aplicativos de serviço de transporte. É a conhecida política da Uber de apresentar-se como fato consumado. “Somos o futuro. Lidem com isso.” Resta agora saber se a Câmara também mudará de rumo perante o poder de pressão da empresa. A tecnologia tem um papel decisivo na melhoria das condições de vida da população mundo afora? Sem dúvida. A Uber tem condições de estar à frente desse processo? Definitivamente, não.
*João Peres é jornalista, integrante do Conselho Editorial da Editora Elefante e tradutor do livro “Uberização: a nova onda do trabalho precarizado”. Tadeu Breda é coordenador editorial da Editora Elefante.