Bajonas Teixeira de Brito Junior*
Nenhum lugar poderia ser mais simbólico para a execução do projeto piloto de uma superpolícia arquitetado pelo ministro Nelson Jobim que a favela do morro da Providência. Ou será que vamos esquecer que o nome “favela” surgiu quando, retornando das chacinas de Canudos há mais de cem anos, depois de deixar para trás cerca de 25.000 mortos, os veteranos começaram a ocupar a região do Centro do Rio de Janeiro em que, hoje, fica a favela do morro da Providência? Parece que, como diria Dom Casmurro, a história do Brasil tem sempre que juntar as duas pontas do tempo.
O assassinato dos três jovens no Rio de Janeiro merece da parte de qualquer um que se preocupe com os rumos da democracia brasileira uma reflexão profunda. Em primeiro lugar porque, por mais bárbaro que seja o ato na nossa primeira percepção, vendo ali uma atrocidade que envolve seqüestro e homicídio triplamente qualificado, por forças públicas, há, ao que tudo indica, ainda um agravante mais hediondo: as torturas que os jovens sofreram nas mãos a que foram entregues pelos seus raptores. Uma das mães relatou que o rosto do filho encontrava-se completamente desfigurado. Portanto, não é pouca coisa aquilo com que se tem que lidar. Certamente, seria equivocado afirmar que o Exército foi responsável direto, o que não parece ser o caso. Irresponsabilidade, contudo, seria não se perguntar como marcharam os fatos para que chegassem a uma ocorrência tão repulsiva.
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A resposta a esta pergunta vai nos mostrar que há um projeto que se articula dentro do Estado, que tem entre seus promotores o ministro da Defesa, Nelson Jobim, e que se encaminha para garantir a participação do exército na segurança pública, como uma superpolícia, à qual nem sequer se aplicaria a legislação que regula as polícias hoje. E lembremos que, para muitos, essa polícia goza de demasiados caminhos para a impunidade.
Ninguém ignora que a democracia brasileira é em grau superlativo excludente, mantendo na marginalidade imensos contingentes da população. A defasagem entre os que usufruem de ganhos democráticos e as legiões dos sem-democracia é tão drástica e ampla que não é deslocada a questão de se a forma política do Estado brasileiro, a democracia, não significa ao fim das contas apenas um engodo. Basta ver o tema da violência policial em todos os estados brasileiros. Contudo, de uns tempos para cá, percebem-se movimentos nítidos no sentido de dar um cunho ainda mais contundente, letal e discriminatório, aos modos de dominação que se costuraram dentro desta democracia.
As duas principais iniciativas que se verificam aí são de cunho repressivo. E ambas estão sendo postas à prova no Rio de Janeiro. Uma, a das milícias, se pode chamar de vertente concentracional e criminosa, uma vez que se vale do espaço dos bairros pobres (as comunidades, ou favelas) para, dentro deles, estabelecer um sistema de extorsão de lucros calcada na compulsão e na violência. Exatamente como se dava dentro dos campos de concentração, em que a exploração do trabalho era feita sob ameaça constante e imediata de morte. É formada por bombeiros, policiais e ex-policiais, guardas penitenciários e, segundo diversas matérias publicadas nos jornais, seus coordenadores são políticos.
A outra é, em muitos sentidos, absolutamente contrária a essa primeira: é de caráter público, se estabelece dentro de parâmetros institucionais e legais, e visa a solucionar um problema essencial do país, a segurança pública. Num contexto em que não faltam vozes para afirmar que a violência trava o desenvolvimento do país, até nesse sentido o projeto se enquadraria numa perspectiva de construção da nacionalidade. Este é o projeto de uso do Exército na segurança pública. Seu principal porta-voz e promotor é o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que, se fosse bem sucedido com ele, certamente engrossaria seu capital político para uma ambição que já deixou aflorar: a de chegar à Presidência da República. Dificilmente será equivocada a desconfiança de que sua insistência na permanência das tropas no morro da Providência se relaciona com o sonho presidencial. E bastaria a insensibilidade e a infelicidade atroz de suas palavras, ao nos exortar para “não deixar que as mortes contaminem as obras”, para indicar o erro completo do projeto do ministro.
Vejamos o projeto. Segundo o ministro afirmou na noite de 12 de junho, está em elaboração um projeto na forma de um estatuto jurídico especial, para que as Forças Armadas atuem na garantia da segurança pública. E o façam sem estarem sujeitas às mesmas leis que o policial comum tem que respeitar em operações urbanas. Portanto, está-se visando a algo além do policial comum. Um superpolicial, cujas leis seriam diferentes daquelas aplicáveis ao restante dos mortais. Segundo o ministro, até que o novo código seja instituído, o militar não pode atuar sem permanecer vulnerável a processos com alegações criminais. É preciso dizer mais alguma coisa? O que aconteceria com os militares agora acusados no Rio, se este projeto já houvesse sido aprovado?
Mas, vamos considerar a polícia brasileira. Segundo o renomado sociólogo francês Loïc Wacquant, entrevistado pela Folha de S. Paulo em maio de 2006, as elites políticas brasileiras usam o “estado penal – política, tribunais e sistema judiciário – como o único instrumento não só de controle da criminalidade como de distribuição de renda e de fim da pobreza urbana”. O resultado disso, continua ele, é que só a polícia de São Paulo mata mais que as polícias de todos os países da Europa juntos (leia mais). Ora, em janeiro de 2007, uma matéria de Bruno Tavares para O Estado de S. Paulo mostrava que, em média, a polícia do Rio de Janeiro matava dez vezes mais que a de São Paulo (leia mais).
Considerando esses dados, não podemos escapar da conclusão de que, no que tange à segurança pública, nos encontramos frente a uma situação pavorosa. E, no entanto, na cabeça do ministro da Defesa isso não é suficiente. É preciso mais. É preciso ir além. A polícia, com todas as suas vicissitudes, com tudo que vemos de impunidade, ainda é pouco. É preciso dotar os militares de um estatuto próprio que os resguarde diante da justiça nas ações em meio à população urbana. Onde vamos parar? Vamos parar no projeto de Jobim, no projeto de um grupo da sociedade brasileira em que, segundo o ministro, incluem-se “vários governadores e setores da sociedade que querem o Exército nas ruas”. O morro da Providência pode ser tomado como projeto piloto. Um projeto que, no exterior, diz Nelson Jobim, já está tendo êxito no Haiti. “O Exército, a Marinha e a Aeronáutica têm expertise para tratar de conflitos em áreas urbanas”, diz o ministro. O Haiti é aqui.
Depoimentos dos moradores da Providência falam do período em que o Exército tem ocupado a favela como um período de horror. Em matéria publicada no site da Globo, encontramos um relato estarrecedor da situação. Cito apenas um dentre outros depoimentos: “Nós já estamos sendo violentados há muito tempo, com espancamentos, arrogância, prisões indevidas e agora as mortes dos meninos pelo Exército. Hoje nós estamos vivendo uma vida massacrada, não podemos ter atitude, temos horário para entrar e sair, uma vida ridícula, sobressaltados com medo de eles invadirem nossa casa” (leia). Pois é esta a expertise que Jobim quer trazer para o Brasil.
É de admirar que, ao fim, tenhamos chegado a um resultado trágico? Mas as coisas não param por aí. Matéria da Agência Estado mostra, através de documento do próprio Exército, que a operação que se desenrola no morro da Providência não é uma operação de apoio às obras do projeto Cimento Social, não é uma operação subsidiária, mas sim uma operação de ocupação da comunidade. O documento que a instrui é apresentado na matéria em resumo do modo seguinte: “No documento da 9ª Brigada, o que se nota são regras para uma típica operação de ocupação da comunidade. Não há referência à segurança dos canteiros de obras ou dos operários. Prevê-se, inclusive, a reação dos militares diante de situações como hostilidade dos moradores, encontro de pessoas armadas ou de cadáveres, arremesso de granadas contra a tropa e a revista de suspeitos, entre outras” (leia mais).
Tudo parece convergir para a conclusão de que, no morro da Providência, se montou, como um projeto piloto, um campo de prova daquilo que os setores conservadores da sociedade brasileira querem como política social para o século XXI. Uma substituição da polícia, dessa polícia já absurdamente violenta que conhecemos, por uma estrutura de choque ainda muito mais frontal. Prova disso é a própria reação das tropas com os primeiros protestos dos moradores: as paredes estão cheias de marcas de balas de fuzis e diversos moradores foram intoxicados com as bombas de gás lançadas sobre os manifestantes. Jobim quer algo que faça o Bope parecer brincadeira de criança.
A sociedade brasileira, cada vez mais, marcha para se tornar um grande campo escravista que, paulatinamente, em razão do crescimento populacional e do adensamento de todas as suas atrocidades históricas, foi substituindo o capitão do mato, pela guarda nacional, a guarda nacional pela força policial, a força policial tradicional pela polícia militar, a polícia militar pelos batalhões especiais (BOPE, ROTA, COI, etc. etc.) e agora vê, como se fosse um câncer com suas metástases, duas derivações igualmente malignas, as milícias e o uso das forças armadas contra a população urbana.
Não se pode deixar que a ambição de Nelson Jobim de chegar à Presidência da República, que o desejo de manutenção de privilégios às custas da eternização da abjeta desigualdade que caracteriza o país, introduza a guerra social preventiva generalizada. Porque é isso, de fato, que está em questão: militarizar a sociedade de forma a conter as massas humanas relegadas à miséria com o uso de tanques, granadas e fuzis. O olhar hostil de jovens que se vêem excluídos das ruas em que cresceram é tomado como casus bellicus, motivo para guerra. Isso é um absurdo insano. Lula chamou de insano o ato de entrega dos três rapazes, mas esqueceu de dizer que esta insanidade só foi possível em razão de uma outra, montada e dirigida a partir do Estado, de dentro de alguns ministérios.
Em vista disso, creio que a sociedade organizada deveria pedir a saída do ministro Nelson Jobim. Creio que em qualquer lugar do mundo, este ministro já teria entregue o boné e estaria sujeito a uma investigação minuciosa, versando sobre as ligações do projeto por ele apoiado, que pretende transformar em lei até dezembro deste ano, com a ocupação da Providência como uma experiência piloto e os fatos macabros que terminaram por se consumar. Não se pode tapar o sol com a peneira e desconhecer que o reforço do latifúndio através da política dos biocombustíveis, o desmonte do Estado pela via das privatizações, a regressão dos direitos sociais e a fragilização das regras de garantia do trabalhador, hoje parecem prestes a ungirem o Brasil como um Império Neoescravista.
O que falta? Talvez apenas isso: uma superpolícia, treinada para enfrentar no campo de batalha o poder de fogo de inimigos bem preparados, que, contudo, será realocada para o enfrentamento interno, isto é, para oprimir, aterrorizar e barbarizar mulheres, crianças, jovens e idosos desarmados. Não se podem aceitar as barbaridades que acabamos de presenciar, muito menos o projeto sobre o qual se estrutura e que, como é fácil prever, promete muitas outras reedições dos mesmos fatos. E é preciso verificar a parcela de responsabilidade de Nelson Jobim em tudo isso.
Artigo publicado em 20/06/2008. Última atualização em 12/08/2008.
* Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, autor do ensaio, traduzido pelo filósofo francês Michael Soubbotnik, Aspects historiques et logiques de la classification raciale au Brésil (Cf. na Internet), e do livro Lógica do disparate.
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