O governo brasileiro vai comprar mais uma briga com ecologistas às vésperas da Rio +20, conferência da ONU sobre meio ambiente a ser realizada em junho. Trata-se da entrada em vigor da Medida Provisória 558/2012, que, em resumo, altera limites de unidades de conservação federais na Amazônia para permitir a construção de usinas hidrelétricas. Como define seu artigo 1º, a medida diminui áreas do Parque Nacional da Amazônia; do Parque Nacional dos Campos Amazônicos; do Parque Nacional Mapinguari; da Floresta Nacional de Itaituba I e II; da Floresta Nacional do Crepori; e da Área de Proteção Ambiental do Tapajós. A intenção do governo ao editar a MP é a execução do Complexo Hidrelétrico de Tapajós, projeto de geração de energia desenvolvido pela Eletrobras que integra o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
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A iniciativa tem enredo de cinema: cinco usinas hidrelétricas fincadas na selva amazônica, sem qualquer acesso que não seja pelo ar (por meio de helicópteros), e operadas por meio de alta tecnologia – inédita em todo o mundo e desenvolvida pelo Brasil. Ao final da empreitada, a estrutura de apoio – alojamentos, canteiros de obra e demais instalações – ao redor das hidrelétricas será removida. Uma vez em funcionamento, as usinas serão conduzidas por funcionários que se revezarão em turnos de trabalho. Helicópteros farão a troca de posto dos operadores – que, como nas plataformas de petróleo, ficarão isolados do resto do mundo em suas jornadas.
Na verdade, o que se deseja com a nova tecnologia é justamente reduzir os riscos ao ambiente. Com a retirada da estrutura ao redor das usinas tão logo elas fiquem prontas, acreditam os técnicos responsáveis pela operação, evitar-se-á a permanência ou a concentração de pessoas no local após as obras. Após a realização de outras obras semelhantes de grande porte, o que se verificou foi a criação de cidades sem qualquer ordenamento urbano, gerando grandes problemas ambientais. Ou seja, as unidades serão como ilhas de tecnologia cercadas de biodiversidade por todos os lados, e nada mais – à semelhança das plataformas de petróleo nos oceanos.
“É quase um filme de ficção. Isso tudo me fez lembrar o Avatar”, comparou o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, em entrevista concedida ao jornal O Globo no início do ano. Com a declaração, Lobão parecia querer emprestar um ar de leveza ao tema polêmico – a solução foi a analogia ao longa de 2009 dirigido pelo cineasta James Cameron, o filme que deu origem à nova era do cinema 3D, vencedor de cinco estatuetas do Oscar no ano seguinte – todas em categorias técnicas: direção de arte, fotografia e efeitos visuais.
Além do efeito visual amazônico, técnica é o que também não falta ao Complexo Tapajós, de acordo com o governo. A estimativa é de 10.683 megawatts extras de energia gerada para o país. Ao todo, serão “200.480 quilômetros quadrados de preservação para 1.979 quilômetros quadrados de intervenção” no perímetro de preservação alterado pela MP, que restringe a 1.070.736 hectares a área limitada. O rio Tapajós, em cujo curso será executado o empreendimento, está inserido no bioma de dois estados – Mato Grosso, sua origem, e Pará, onde seu curso deságua ainda na bacia do rio Amazonas. Com área menor de inundação, as hidrelétricas funcionarão no modelo “fio d’água”, que canaliza a força da correnteza.
Questionado pelo Ministério Público
Mas, a despeito de toda a engenhosidade e da expectativa criada pelo ineditismo do projeto, o instrumento que o viabiliza já está questionado pelo Ministério Público Federal. Em 9 de fevereiro, o procurador geral da República, Roberto Gurgel, ajuizou no Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade contestando a medida provisória, sob a alegação de que espaços territoriais especialmente protegidos só podem ter limites alterados por meio de lei “em sentido formal”.
Para Gurgel, a MP fere, ao alterar tais divisas, o princípio da reserva legal previsto na Constituição. Além disso, aponta o procurador, o empreendimento não está contabilizado no Plano Decenal de Expansão de Energia 2000, concebido pelo Ministério de Minas e Energia.
Filme didático
Para o governo, o projeto inédito e 100% nacional demonstra não só a compatibilidade entre meio ambiente e produção de energia, como também a possibilidade de produzi-la em maior escala a partir de delimitações geográficas menores e menos inundadas. Para emplacar a tese, texto e imagem foram conjugados e amplamente postos à disposição do internauta.
“Há uma extensa região, na bacia do rio Tapajós, que oferece condições de conciliar meio ambiente com a geração de energia. Aproveitando essa condição especial, o governo brasileiro apresenta o Complexo Tapajós. São cinco usinas em um arranjo espacial que permite ocupar pouco e preservar muito”, diz o vídeo elaborado pelo Sistema Eletrobras e veiculado no Youtube, em que a estatal ressalta as virtudes do projeto. Confira:
A tecnologia das usinas plataformas é inspirada no método de exploração de petróleo em águas profundas, como lembra a Eletrobras em outro vídeo postado na internet. Em ambos os filmetes fica clara a intenção do governo em garantir que o sistema é ecologicamente correto, apesar das dúvidas que pairam sobre um método inédito de geração de energia, com desempenho e resultados até hoje desconhecidos.
“Na construção e operação das usinas plataformas, os funcionários se revezam em turnos longos, e ficam acomodados em alojamentos temporários no local, exatamente como nas plataformas de petróleo. Não haverá vilas residenciais, e isso reduz a população no torno da usina. E menos gente é menos impacto na natureza”, argumenta. Até a piracema, época de reprodução de peixes, afirma-se, será resguardada pelo sistema, com canais construídos para ligar leito e reservatório da usina. “Quando acabar a construção, a área que antes recebeu a infraestrutura e os equipamentos necessários à obra será desocupada e reflorestada.”
Assista ao vídeo sobre as hidrelétricas-plataformas:
Em outro vídeo produzido pela Eletrobras, é possível visualizar como serão construídas as usinas-plataformas no meio da floresta e a posterior retirada da estrutura funcional – novamente, evidencia-se a preocupação governamental em demonstrar seu cuidado com a ecologia. Didáticas, as imagens sobre o novo modelo surgem a partir dos cinco minutos e 44 segundos de filme. Confira:
Em curso no Congresso
Em vigor desde 6 de janeiro, a matéria (leia a íntegra) assinada pela presidenta Dilma Rousseff e pelo ministro Lobão passa a trancar a pauta de votações em plenário a partir de 18 de março, esteja ela em tramitação na Câmara ou no Senado. O deputado Zé Geraldo (PT-PA) foi designado relator da matéria, mas ainda não emitiu seu parecer. Também subscrevem a MP os secretários-executivos Francisco Gaetani (Ministério do Meio Ambiente), Márcia da Silva Quadrado (Desenvolvimento Agrário) e Eva Maria Cella (Planejamento).
A MP 558, na verdade, é a reedição da MP 542/2011, que perdeu validade em 12 de dezembro por falta de consenso de lideranças, o que não permitiu sua votação em plenário. Assinada pelos ministros Izabella Teixeira (Meio Ambiente) e Afonso Florence (Desenvolvimento Agrário), a MP arquivada havia sido enviada em agosto ao Congresso e visava sanar entraves agrários nas cercanias dos parques ecológicos mencionados, além de excluir destes domínios áreas a serem alagadas por represas.
Na defesa da nova MP, Lobão garante que o Ministério de Minas e Energia e a Eletrobras seguirão à risca todas as “condicionantes” estabelecidas pelas autoridades ambientais. Em outras palavras, Lobão diz que o ministério vai se submeter, em nome da consecução do projeto, às restrições de execução impostas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), autarquia federal vinculada ao Meio Ambiente, que tem o servidor Francisco Gaetani entre os subscritores da medida provisória.
No texto da MP, diversos artigos fazem menção ao “órgão ambiental competente”, em mais um sinal de que o governo se prepara para o embate com ambientalistas e demais representantes de classe ligados ao tema. No artigo 6º, por exemplo, a medida admite, “dentro dos limites da zona de amortecimento do Parque Nacional dos Campos Amazônicos, atividades minerárias autorizadas pelo Departamento Nacional de Produção Mineral e licenciadas pelo órgão ambiental competente, (…)”. Já no artigo 3º fica estabelecido que áreas “desafetadas” do Parque Nacional da Amazônia ficam destinadas a “projetos de assentamentos sustentáveis” a serem concebidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
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