Há algumas colunas atrás falei do meu avô paterno Victor (que aliás não se chamava Victor) e, em nome da simetria literária, é preciso que agora eu fale também de sua mulher e minha avó paterna, Teresa (que, aliás, também não se chamava Teresa), uma vez que ambos, a meu ver, constituíam um vínculo (a palavra “arranjo” o definiria melhor) perfeito para as uniões daquela época – início do século XX. Este retrato está publicado em meu romance Caim – sagrados laços frouxos (Rio, Record, 2006).
Teresa
De modo que meu avô Victor raramente se dava conta do que ocorria lá fora, fora do seu âmbito, fora daquele bolsão fora do tempo e do espaço, isto é, no resto da casa, lá onde longinquamente ribombava o trovão, precipitava-se a roda dos nascimentos e mortes, e a vida se encapelava em remoinhos cujo vórtice era Teresa, o expoente matriarcal de toda a região sudeste de São Paulo que, ao longo de três gerações, dominou a família.
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Seu corpo não abrigava apenas uma alma, antes uma força da natureza inquebrantável que jurara enterrar todos os filhos e certamente o faria se não tivesse consumido a tal força que abandonou seu corpo devastado por legiões de bens e males superpostos: fosse por Teresa, essa jamais entregaria os pontos, ah, não senhor, e eu não queria estar no lugar do Senhor Deus quando Este a chamou de volta, o Velho Estúpido, que iria ajustar contas.
Teresa reinava absoluta e ruidosamente para além daquela porta e, mediante tão completa soberania, a inexpugnável privacidade de Victor, representada por aquela maldita porta fechada, era uma afronta. Embora calasse, internamente fervia, só ela sabia quanto custava dominar-se, o mesmo que tentar conter uma erupção vulcânica com a tampa duma panela. No entanto, e em virtude da contenção que lhe era imposta, seria capaz de trucidar qualquer ente ou entidade animada e inanimada que tentasse violar a cidadela de paz do pobre Victor, tinha que protegê-lo, mesmo sabendo ser inútil, pobre sujeito indefeso, ainda mais pateta do que os filhos.
PublicidadeTeresa adejava por entre nuvens de farinha, fornadas de pão e canecas de vinho tinto. Praguejando em dialeto bávaro, ela se erguia maciça, sólida, inexpugnável, coluna dórica em meio ao furacão, com seus vestidos cinzentos e o pau de macarrão, eternamente vigiando o fogo, enxovais, adultérios, as comadres por sobre o muro, num torvelinho de penas, biscoitos e mazelas, ao alcance dos passarinhos.
Teresa não só vivia ruidosamente como o fazia em grande estilo, gerando recursos para que a vida não lhe negasse uma só migalha. A oficina com trinta e duas bordadeiras rendia dez vezes mais que o magro salário oficial do marido. Atendia encomendas das famílias ricas, que fossem as tradicionais também, vá lá, seu arrogante sangue austríaco exaltava-se porque nele corria a arte secular do “bruzdôn”, o bordado, uma das tantas coisas que constituíam não apenas sua herança, mas seu patrimônio sonante; possuía uma habilidade diabólica para engendrar os motivos de flores, pássaros, nuvens, entrelaçando-os como constelações, sem jamais repeti-los a não ser nas sutis variações que caracterizam um estilo, a assinatura em relevo sobre a cambraia, o linho, o cetim, os fios de seda, lã, prata, ouro, uma vez que o dinheiro queimava em suas mãos.
Inventava saraus e passeios a pretexto de tudo e nada, suas festas eram apoteóticas. As filhas, Liris e Laís, e mais quatro empregadas, extenuavam-se quinze dias antes nos doces e salgados. Na antevéspera, Teresa presidia os assados, contratava os músicos, pois se os filhos, ao menos os mais velhos, já estavam em idade de casar, então que se divertissem antes em casa, ao invés de sabe-se lá onde. O argumento era irrefutável, sem contar que Victor a certa altura poderia desaparecer, recolhendo-se indefinidamente na biblioteca.
Velha, odeio festas/ Sim, meu velho, mando uma bandeja às onze?/Como quiser, minha cara – e ambos piscavam. Sim. Era um arranjo admirável que, naturalmente, não confessavam sequer a si próprios. O fato é que o casamento, a inefável instituição com sua aura de respeitabilidade permitiu a Teresa e a Victor fazerem precisamente o que queriam.
Assim, uma aliança mais poderosa os unia: a cada um competia resguardar não a honra ou o amor ou a respeitabilidade, mas a individualidade do outro. Embora se comportassem como inimigos declarados, no fundo amavam-se incondicionalmente e sem ilusões, como se o amor tivesse um nome secreto, conhecido unicamente por eles, isto é, por aqueles que, a despeito de tudo, permanecem fiéis a si próprios.
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