O assassinato de Marielle Franco significa um salto gigantesco no terrorismo de Estado que, existente no Brasil há décadas, ganhou novo impulso durante a gestação do golpe de 2016, e atinge agora seu cume com a devastação militar no Rio de Janeiro. Os militares podem agora matar as saudades da Minustah e superar as limitações aos abusos contra civis que, mesmo dentro dos defeitos e carências do direito internacional, a ONU impunha.
Com efeito, a anulação absoluta dos direitos humanos no estado do RJ e a obtenção de poder absoluto dos fardados transformam o Rio numa ditadura militar, no melhor estilo de 1964. Só falta estende-la a todo o país para completar o panorama.
Há muito tempo que as ONGs de direitos humanos denunciam os massivos massacres contra afro-brasileiros, índios, pobres, mulheres, crianças, e pessoas com orientações sexuais, políticas e religiosas diferentes às impostas pela tradição. Por exemplo, a organização HRW (Human Rights Watch, Observatório dos Direitos Humanos) que tem revelado dados impressionantes confirmados por outras ONG’s e por organizações internacionais:
Em seu relatório mundial de 2016, elaborado por pesquisadores e especialistas de diversos países, munidos de informações exaustivas e convergentes, HRW relata o seguinte (os comentários são meus):
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- No lapso de um ano (coincidente com o período de preparação do golpe) houve 437 policiais e 4224 civis assassinados no Brasil, ou seja, um aumento de 26% em relação com o ano anterior.
Existem muitas outras estatísticas específicas que se referem ao assassinato de crianças, mulheres, afro-brasileiros, homoeróticos e outros grupos vulneráveis. Esses dados podem ser encontrados em centenas de sites e são os que sustentam a fama da truculência policial do Brasil. Com efeito, a polícia brasileira não é apenas a mais letal do Ocidente, mas do mundo todo.
Nesse cenário de genocídio, cabe perguntar-se: por que a morte de Marielle é especial? Sabemos que todas as vidas de pessoas pacíficas são igualmente valiosas. Por que, então, esta comoção?
Marielle era uma ativista de direitos humanos, mas, também, muitos outros ativistas são assassinados pela polícia e os exércitos. No Brasil, em média, mais de 80 ativistas por ano são assassinados pelo Estado ou por jagunços e forças parapoliciais. No total, 1833 ativistas rurais foram assassinados desde 1986.
Mas, até o 15 de março de 2018, nunca havia sido atingida uma figura tão relevante, decidida e querida pelo povo, que fizesse críticas tão profundas e objetivas contra a barbárie policial e militar na cidade brasileira mais ensanguentada pela repressão. Além disso, era uma pessoa com um definido compromisso com o socialismo. Ela era a mais forte opositora à intervenção militar, em contraste com alguns políticos considerados “progressistas”, que nutrem uma espécie de fascínio místico pelos ditos “militares do bem”.
Em contraposição com essas posições oportunistas ou ingênuas, Marielle teve a atitude bem definida de quem nunca trocaria vidas humanas por cores partidárias ou barris de petróleo. Em poucas palavras: Marielle representava, como muitos outros, mas com especial intensidade, o confronto entre a alegria de viver e a insanidade de matar.
É preciso perceber alguns detalhes. Em sua miséria moral e intelectual, os golpistas e seus consultores pensaram que este crime geraria terror no povo carioca, obrigando a população a fechar-se em suas casas e aceitar as maiores humilhações em troca de uma eventual, porém possível, sobrevivência.
Se tudo continua como nestes dias, podemos afirmar que estes elementos se enganaram. Não calcularam que a reação popular seria digna e vibrante, e ainda (o que é pior para eles) se difundiria por todo Ocidente ganhando as manchetes dos jornais até em lugares onde o Brasil é pouco conhecido. Mas, também pode acontecer que o aparato do Estado calculasse que, mesmo se o assassinato da ativista provocasse reações iniciais, ele serviria para ir desgastando o movimento popular. Lamentavelmente, não podemos afirmar que eles estejam 100% errados.
Se não forem tomadas medidas que envolvam organismos internacionais, apoiadas pelos movimentos de esquerda internacionais, será difícil garantir que o povo brasileiro consiga algo superior a este quadro de nazismo tropical. Não serão os acordos entre políticos (que, qualquer que seja sua origem, são parte de uma elite), os que erradicarão a violência e a exploração da sofrida classe popular.
“Se você está doente, precisa de alguém que te cure, mas será difícil o fazer se o médico também estiver contaminado“.
Fumaça Golpista
Ao perceber o exagero cometido, os operadores golpistas, em todos os níveis do Estado, procuraram distrair a atenção simulando que eles também repudiavam o crime e tentando incutir a crença de que aqueles que o haviam cometido não eram membros de sua turma.
O mais rápido na montagem do circo foi o presidente, que ameaçou as organizações criminosas dizendo que elas “não matarão o nosso futuro”. (Qual futuro?) Tudo bem. Eles devem ser punidos, junto com seus mandantes, cúmplices, apoiadores e “fãs”. Ora, eis o problema: quem são e onde estão as organizações criminosas das que fala o chefão?
Sem dúvida, quem matou Marielle é uma organização criminosa. Mas, será que uma tal organização está sempre fora do Estado? Isso acontece apenas em países muito democráticos onde o Estado tenta coibir o crime para proteger seus habitantes. Nunca é verdadeiro em países com democracias aleijadas, como prova o crescente poder da Camorra na Itália, e muito menos em ditaduras golpistas acobertadas por caricaturas de parlamento, como a nossa.
Há muitos fatos que induzem a pensar que, no Brasil, essa diferença entre crime privado e crime de governo é tênue, se por ventura existir. Vejamos apenas o mais recente e escandaloso de todos eles:
- Foi na gestão golpista que uma pessoa reconhecida como consultora de uma forte gangue criminosa foi elevada ao cume da carreira jurídica. Este fato foi reconhecido até pela mídia conservadora.
Mas, também outros altos funcionários da área jurídica do Estado tentaram nos tapear com comparações inexatas.
Alguns compararam a execução de Mariella Franco com a da juíza Patrícia Alcioli, acontecida também no Rio em 2011. De fato, ambas foram mortas a tiros e, em ambos os casos, os executores eram membros da polícia. Mas, as diferenças são mais importantes que as semelhanças.
1) Alcioli foi executada por um grupo de policiais que corriam risco de serem condenados por crimes comuns, como extorsão, roubo, tráfico e coisas do gênero. O número de milicianos que apoiou o crime devia ser grande, mas não é claro que o conjunto da polícia, considerada como instituição e, menos ainda, o governo estadual e federal, tivessem interesse nesse crime.
2) Pelo contrário, a juíza teve proteção constante de três agentes policiais entre 2002 e 2007 e de um agente armado nos anos seguintes.
3) O assassinato da vítima parece um típico delito comum, daqueles que certos bandidos realizam para tirar vantagens ou não perder as que já têm. Este crime não é diferente do cometido por quem mata um vizinho que pode delatá-lo ou “apaga” alguém por vingança.
Mas, o que acontecia com Marielle?
a) Ela não mirava ninguém em particular, não tinha poder para processar ou condenar e suas denúncias sequer eram atendidas pela Justiça.
b) Marielle não podia enfiar ninguém no xadrez, mas podia usar seu carisma para denunciar os crimes, não apenas de uma banda de policiais-milicianos mas de todo um sistema de barbárie, corrupção, racismo, misoginia e genocídio. Ela esclarecia, abria os olhos, ensinava a realidade da injusta vida do povo às multidões que a seguiam e conseguiu consenso em diversos países e regiões, como provam as milhares de manchetes publicadas sobre seu assassinato nas principais línguas do planeta.
c) Como milhares de outros ativistas, Marielle usava as armas mais pacíficas: a inteligência, a sensibilidade e a força moral. Até alguns exércitos poderosos foram derrotados com essas armas, como aconteceu com os nazistas, os stalinistas e os americanos.
Enfim: o crime contra Alcioli foi um crime cruel com 21 tiros. Mas, goste ou não, é um crime comum. O crime contra Marielle é um crime de Lesa Humanidade.
Para determinar os autores do crime, talvez seja útil a antiga e desgastada pergunta: A Quem Beneficia? Ou, em nobre juridiquês, Cui bono?
No caso de Alcioli, o assassinato beneficiava um bando de autores de crimes comuns enquistados na polícia. No caso de Marielle, sua execução, se tivesse cumprido seu fim (amedrontar a população), teria beneficiado a:
A) Grandes bandos de fanáticos (talvez um 70% ou mais da classe política), fundamentalistas, racistas, misóginos, chauvinistas, homofóbicos, mercadores de armas e de escravos.
B) Os grandes capitais que afundam cada vez mais o povo na miséria absoluta e tornam bilionárias (já quase trilionárias) as elites parasitas.
C) O sistema policial exterminador, que faz a faxina social matando “vidas inúteis” e soltando o dedo para afastar o tédio.
D) E, agora, o sistema militar, que, ante a falta de coragem para lutar guerras de verdade, experimenta suas armas e apetrechos em civis indefensos dos morros.
Lembremos um fato fundamental, que não mereceu a atenção que merecia. No começo da operação, o chefe do exército exigiu do governo garantias de que não haveria uma Comissão da Verdade. Em termos mais claros: pediu um salvo-conduto antecipado para os crimes de guerra sem os quais a vida militar careceria de emoção.
Finalmente, se o assassinato da Marielle tivesse tido o sucesso esperando, se tivéssemos ficado com medo, o grande beneficiado do crime seria o sistema golpista em todos seus escalões. Não sabemos ainda se o tiro saiu pela culatra. Estes elementos não teriam problema em fabricar todos os cadáveres necessários para tornar respeitável o terrorismo de Estado. Mas, justamente para evitar isso, devemos elaborar propostas para uma longa, intensa e programada resistência.
Propostas
Não é improvável que os golpistas avancem em suas “investigações” sobre os autores do crime, e que culminem com o julgamento e condenação de três ou quatro tiras que servirão como bucha de canhão. Também é possível que esses bodes expiatórios sejam os que realmente atiraram na vereadora e no motorista. Por que não?
Porém, a punição dos assassinos, embora necessária para evitar a continuidade dos crimes, não é suficiente para confrontar o gigantesco aparato de repressão e abusos que envolve todos os níveis e estilos do poder golpista brasileiro, e que possui fontes em lugares diversos, como o Norte das Américas e o Sul da Europa.
O ativo deputado Miguel Urbán Crespo, do Grupo da Esquerda Unitária Europeia e da Esquerda Nórdica Verde (GUE/NGL), num breve e emocionado discurso no Parlamento Europeu tocou no ponto exato do conflito, ao atribuir este crime aos interesses envolvidos no processo eleitoral brasileiro. Também fez referência ao caráter total da violência no Brasil e a necessidade de parar essa violência.
Este ponto de vista, compartilhado por um total de 52 parlamentares europeus, mostra que, embora necessário, não será suficiente encontrar os autores diretos da execução. Eles são apenas alguns grãos de areia entre as grandes dunas do neonazismo e do neoliberalismo que moldam o Estado atual.
Se, como penso, pode ser fantasioso pretender dotar ao Brasil de uma democracia mais ou menos séria em poucas gerações, pelo menos deve ser possível parar o mecanismo de destruição da economia, dos direitos sociais e do genocídio. Essa é, porém, uma tarefa difícil e perigosa, mas temos importantes amigos solidários no resto do mundo.
É preciso afinar um projeto conjunto que permita denunciar o caráter criminoso do nosso sistema político atual e sua absoluta incompatibilidade com todos os princípios das Nações Unidas. Seus dirigentes em todos os escalões devem ser desmascarados para que sua queda possa produzir-se antes de que os danos às classes populares virem totais.
Uma sugestão óbvia é a necessidade de unidade de toda a real esquerda, tanto partidária quanto independente, num Frente Único com básicos princípios sociais e antifascistas, que se comprometa a repudiar qualquer negociação com a direita.
Há diversas razões para supor que isto será difícil. Uma delas é a dificuldade inerente à maioria dos países colonizados e subdesenvolvidos: a de separar “esquerda” de “populismo”. Mas deve ser tentado.
Uma sugestão capital provém do mesmo grupo de deputados da Esquerda Europeia. Eles propõem que a União Europeia declare um boicote ao Mercosul, no claro entendimento de que ele é manipulado por três países com governos reacionários, como Brasil, Argentina e Paraguai. (O Uruguai, com um governo democrático e progressista, não deveria ser afetado por essa ruptura).
Estes parlamentares perfazem apenas 7% dos deputados do Parlamento Europeu, cujo presidente é o neoliberal, neofascista e até monarquista Antonio Tajani, um grande impulsor da plutocracia italiana e um dos principais empenhados na desestabilização da Venezuela.
Apesar disso, este grupo possui um prestígio que pode influenciar deputados da esquerda moderada como os Verdes (6,9%) e da Aliança Progressista (25,1%), além de grupos avançados das comunidades políticas da Europa. Além disso, a proposta teria a adesão massiva da França, que considera o Mercosul como um competidor desonesto que se beneficia do trabalho semiescravo em nossos países.
Esta proposta é muito interessante. Se a esquerda brasileira consegue pensar em termos de direitos humanos e de civilização, mais que em termos de poder, poderemos ganhar apoio dos países democráticos para derrotar os golpistas domésticos.
- Aliás, foi o internacionalismo o valor mais prezado de marxistas, socialistas e anarquistas no século XIX.
Acho importante acrescentar outra sugestão, a mais difícil e complexa. Creio possível denunciar as principais lideranças de repressão no Brasil à Corte Penal Internacional.
Mas, estou redigindo os detalhes sobre isto em outro artigo que publicarei como Marielle 2.
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