Os efeitos da greve dos caminhoneiros ainda estão longe do fim e deputados estão prestes a colocar ainda mais lenha na fogueira ao pautar para votação de plenário, nesta quarta-feira (6), o projeto de lei (PL 4860/2016) que regulamenta o transporte rodoviário de cargas (confira os principais pontos abaixo). Chamado de “marco regulatório dos caminhoneiros”, o PL foi pinçado dos arquivos do Congresso justamente para ajudar no enfrentamento da crise do transporte de cargas, mas tem causado atritos entre parlamentares, donos de transportadora e condutores autônomos, que veem na matéria um instrumento de retirada de direitos.
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Representantes dos caminhoneiros disseram ao Congresso em Foco que, além de atingir direitos, o PL foi concebido sob medida para beneficiar os patrões – neste sentido, lembram que o primeiro acordo com o governo, no calor da paralisação nacional, foi assinado por oito entidades, sete das quais representantes do patronato. Relator da proposição, Nelson Marquezelli (PTB-SP) disse a este site que o texto não prejudica trabalhadores e não favorece apenas empregadores.
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De autoria da deputada Christiane Yared (PR-PR), a matéria já foi aprovada em comissão especial e está pronta para votação no plenário da Câmara. O texto havia sido aprovado pelo colegiado em caráter terminativo, ou seja, sem necessidade de análise pelo conjunto da Casa, mas um requerimento com número suficiente de apoio regimental foi aprovado e obrigou a votação em plenário.
Entidades como a União Nacional dos Caminhoneiros (Unicam), que representa milhares de autônomos e foi uma das organizadoras da greve, dizem que o projeto é mais um instrumento a beneficiar o empresariado do setor. Para o presidente da Unicam, José Araújo Silva, o deputado Marquezelli, um dos maiores produtores de suco de laranja do país, atua justamente em parceria com seus colegas empresários.
Marquezelli rebate José de Araújo e diz que não procede a versão de que seu texto acolherá artigos para favorecer empresários. “Não tem nada disso. Amanhã o relatório vai estar pronto, estamos terminando hoje [terça, 5] à noite. Amanhã você lê, sossegado, e verá que não tem nada disso”, tergiversou o deputado, para quem a matéria será votada até a noite desta quarta-feira.
O presidente da Unicam diz que um dos principais problemas do projeto é relativo ao dispositivo da lei que regula a estadia de caminhões em processo de descarga (Lei 11.442, vigente desde 5 de janeiro de 2007). A norma implica o pagamento dos transportadores aos donos de depósito e terminais de carga, no destino da viagem. Lembrando que há descarregamentos que consomem dias até o esvaziamento total da carga, principalmente em portos, o dirigente diz que os valores ainda são aceitáveis pelos caminhoneiros.
E, nesse sentido, ele diz que o relatório de Marquezelli desfaz os benefícios da legislação. “Com o projeto, [o pagamento da estadia] é negociado entre patrões e sindicatos. Você acha que no interior dos estados vai ter sindicato? Nem tem sindicato! Se tiver sindicato, os caminhoneiros nem entendem [de legislação] e vão se vender para os empresários”, protesta José de Araújo, que encabeçou a aprovação de legislações como o Pró-Caminhoneiro, linha de crédito concedida pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) desde 2006.
Anistia
Marquezelli já avisou que seu relatório terá uma espécie de anistia para multas de trânsito e sanções judiciais impostas a transportadoras e caminhoneiros em razão da greve nacional. No texto original deste dispositivo, o termo “anistia” estava explicitamente registrado, mas uma reunião com representantes do setor fez o relator mudar de ideia. Assim, ficou acertado que as multas e sanções seriam convertidas em advertências, desde que haja justificativa para a conversão.
O deputado explica que, para ter direito à conversão, caminhoneiros e empresas do setor devem ajuizar recurso no Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Segundo Marquezelli, a transformação da multa em conversão estará caracteriza no ato de deferimento do recurso por parte do Denatran.
Mas autoridades direta ou indiretamente ligadas à tramitação do projeto já demonstraram objeção à proposta de anistia. Presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) diz que perdão de multas é algo a ser encarado com cuidado e, além disso, o assunto deveria ser discutido por meio das três medidas provisórias editadas pelo presidente Michel Temer (MDB) no âmbito do acordo com os caminhoneiros. O deputado alega que, por meio das MPs, há mais tempo para o debate.
Advogada-geral da União, Grace Mendonça já avisou não cabe anistia para as multas. Ela argumenta que, por se tratarem de punições processuais em razão de descumprimento de decisão judicial, as penalidades são impositivas e não recorríveis, pois não têm natureza administrativa (como multas de trânsito, por exemplo) e foram impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Grace foi quem acionou o STF para aplicar multas a corporações envolvidas na greve (crime de locaute) e diz que, uma vez aprovada, a anistia incorrerá em inconstitucionalidade por desrespeito à independência entre Poderes.
Fogo cruzado
O propósito inicial do projeto é atualizar e aprimorar normas do transporte rodoviário de cargas em todo o território nacional. Mas, como é praxe em comissões temáticas do Congresso, o texto original recebeu quase cem artigos com os mais diversos objetivos. Marquezelli disse à reportagem que só vai acatar “mais ou menos 18” deles em seu relatório, que estará publicado na manhã desta quarta-feira (6), garante o deputado.
Instado a comentar as acusações do presidente da Unicam, o parlamentar ironizou a situação. “É um tal de China? Ele não tem muito boa referência aqui na Casa, não…”
“Ele é um dos maiores empresários do país. É do setor de cítricos, de laranja, e tem algumas unidades da Ambev. Ele criou [o projeto] com os empresários. É interesse dele”, devolveu o presidente da Unicam, que diz não compactuar com os caminhoneiros que têm defendido intervenção militar. Para o dirigente, eles o fazem por desconhecimento.
“Tem vários artigos que atrapalham a vida dos caminhoneiros. Dos 27 artigos, ele colocou mais 66. Ou seja, tem 93. Imagina como o projeto ficou…”, reclamou José de Araújo, acrescentando que, caso o projeto serja aprovado como quer Marquezelli, seus eleitores, principalmente caminhoneiros, vão saber o que terá sido feito na Câmara. “Eu não vou deixar de graça, doa a quem doer, morra quem morrer.”
Para José de Araújo, Marquezelli “destruiu o projeto” e, com suas intervenções, prejudica autônomos (“É mais ou menos igual à reforma trabalhista para os caminhoneiros”). O representante dos autônomos disse à reportagem que tentou uma audiência com Rodrigo Maia, durante esta terça-feira (5), mas não conseguiu.
Ele já havia enviado documento à Casa Civil e ao Ministério dos Transportes, durante a greve, com uma pauta de reivindicações relativa ao cumprimento da legislação já existente, e diz que sequer tal arcabouço legal é cumprido no Brasil. O dirigente da Unicam foi um dos que não assinaram o primeiro pacote de propostas de acordo do governo, além da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), principal organizadora da greve.
Questionado sobre se a categoria, que ainda se diz insatisfeita, está planejando nova manifestação, ele é reticente. “Muita gente fala em paralisação, mas não acredito que dê greve de imediato. Se não aceitarem, vou fazer outro movimento, não greve”, afirma, lembrando que muitos postos de combustível ainda não reduziram os R$ 0,46 centavos no litro do óleo diesel, nos termos do acordo com o governo.
Chorão
Líder do Movimento Caminhoneiros por um Brasil Melhor, Wallace Landim diz ter conseguido reunir representantes de autônomos das 27 unidades da Federação em Brasília nos últimos dias, em mobilização que conquistou a adesão de motoristas de outros veículos e de alguns cidadãos brasilienses. Conhecido como “Chorão”, o caminhoneiro circulou pelas dependências da Câmara, nesta terça-feira (5), cortejado por deputados como Cabo Daciolo (Patriotas-RJ). Distribuiu a quem solicitava uma “pauta de reivindicações” (imagem abaixo) com data da última segunda-feira (4) contendo nove pontos, e reclamou do governo Temer por não ter recebido seu grupo – que, garante, estuda estratégias para se fazer ouvido.
Dizendo-se contra a intervenção militar, a exemplo do presidente da Unicam, Wallace representa um grupo que reúne milhares de caminhoneiros autônomos em todo o Brasil e ainda estão insatisfeitos com o acordo anunciado pelo governo. Além da redução do preço do diesel, que muitos postos não têm praticado, o autônomo quer ampliar a pauta de conquistas para a sociedade como um todo, e diz lutar pelo litro da gasolina a R$ 3,15. O litro do diesel, diz, tem que ser congelado em R$ 3. Mais pontos de apoio e segurança nas estradas, redução nos preços de pedágio e de pneus, alteração da política de preços da Petrobras para derivados do petróleo são algumas das demandas.
O líder da categoria informa que seus colegas dos 27 entes formam uma espécie de grupo de trabalho para analisar o projeto de lei relatado por Marquezelli, e que a ideia é conquistar direitos por meio desta e de outras matérias em tramitação no Congresso. O caminhoneiro diz ter reunido representantes da categoria no Mané Garrincha, estádio de futebol a cerca de três quilômetros do Congresso, por meio de um grupo de WhatsApp intitulado “Unidos por um Transporte”.
Ele e seus colega de profissão haviam falado em algo em torno de 50 mil caminhões para uma mega-manifestação em Brasília, mas que a situação precária dos caminhoneiros não permitiu o êxito da convocação. “A gente sabia que não viriam, porque muita gente nem tem condições de vir. Mas nosso foco maior é conseguir reunir todos os líderes dos 27 estados, e conseguimos. Tivemos uma reunião muito proveitosa”, disse Wallace ao Congresso em Foco no plenário da Câmara, admitindo que o grupo pecou na divulgação do movimento.
“A gente continua lutando. Há uma esperança de o governo pegar a nossa pauta de reivindicação. Que ele possa entender que não está atendendo só a categoria do transporte rodoviário, mas toda a população. Não se conversa com os representantes das categorias, e sim com os dos sindicatos. Claro, tem muita coisa que o governo já deu”, acrescentou, citando conquistas como a isenção de pedágio para veículos sem carga e a ampliação do número máximo de pontuação de multas na Carteira Nacional de Habilitação. Ele lembrou ainda que parlamentares lhe prometeram manter os termos do acordo, via medidas provisórias, pelo prazo máximo de tramitação e vigência delas, 120 dias. “Mas e depois disso?”
No vídeo, Wallace questiona a gestão Temer: “Não é o governo do diálogo?”:
Confira os trechos principais do PL 4860/2016:
Pedágio
A isenção da cobrança de pedágio do chamado “eixo suspenso” em veículos sem carga já é lei desde 2015, mas há rodovias estaduais que ainda cobram a taxa mesmo com eixos vazios. A isenção foi uma das principais reivindicações dos caminhoneiros durante a greve e consta de uma das medidas provisórias editadas por Temer – que já garantem a vigência da medida no ato de sua publicação, mas o PL 4860 visa dar força de lei à proibição da cobrança.
Roubo ou furto de carga
O projeto determina que, nesse casos, a punição se equipare à pena para roubo ou furto contra transportadora de valores. com suspensão do CNPJ e/ou registro do condutor por um prazo de até dez anos. No caso dos administradores de transportadoras e demais estabelecimentos do setor, o exercício da atividade correspondente fica proibido por cinco anos. Atualmente está fixada de um a quatro anos de prisão a punição para quem comercializa, recebe ou transporta mercadorias fruto de roubo ou furto, com agravante em caso de receptação para venda (pena de até oito anos).
Frete de transporte
A proposição estabelece que o pagamento pelo frete permanece registrado em contrato, mas com multa para o descumprimento do valor combinado, com liquidação do frete em até 30 dias. Será aplicada multa de 10%, no mínimo, para os casos de inadimplência, com juros de mora de 1% ao mês e a devida correção monetária. Hoje, o caminhoneiro lesado precisa recorrer à Justiça caso não receba o valor contratado.
Propriedade dos caminhões de carga
O projeto determina que pessoas jurídicas têm que ser proprietárias de ao menos um veículo no limite de até 11 caminhões. Atualmente, não é obrigatória a comprovação da propriedade de veículo de carga para quem deseja abrir empresa de transporte. Seja exigido dos condutores autônomos pelo menos um veículo registrado em seu nome, com limite de até três caminhões. O objetivo é combater a prática de empresas de transporte conhecidas como “atravessadoras”, pois não possuem veículos e mesmo assim operam no setor por meio da contratação de frete e da subcontratação do caminhoneiro autônomo – que, graças à manobra, ganha menos da metade dos valores totais de cada frete.
Contrato de serviço
O PL 4860 cria o Documento Eletrônico de Transporte. Tratas-se de uma espécie de contrato eletrônico que, na prática, aprimora mecanismos de fiscalização das atividades de transporte de carga. Atualmente, há legislação obrigando contrato entre transportadora e condutores para fins de controle de gastos com pedágio, por exemplo, mas com predomínio da informalidade nessas relações de prestação de serviço. Por meio da mudança, o projeto quer permitir à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) fiscalizar, por exemplo, se de fato o dono da carga, e não o caminhoneiros, tem custeado os pedágios.
Seguro veicular
Atualmente, a contratação de seguro para cobrir danos acidentais à carga transportada é obrigatória. O mesmo vale para os casos de assalto, roubo ou furto do carregamento, bem como para prejuízos causados a terceiros. Mas atual legislação é omissa ao não deixar claro se a contratação do seguro cabe ao proprietário da carga ou ao caminhoneiro. Por isso, o projeto confere ao transportador a responsabilidade pela contratação do seguro, cabendo ao contratante do serviço o custeio dos seguros adicionais.
Ao atribuir ao transportador a responsabilidade pela contratação do seguro, o projeto visa integrá-lo no processo de elaboração do Plano de Gerenciamento de Risco (PGR) junto às seguradoras do setor. Hoje, o PGR é integralmente elaborado por transportadoras e dá margem, por exemplo, à seguinte situação: caso um condutor seja roubado ao parar para dormir em um ponto de descanso que não esteja no plano, caberá a ele arcar com o prejuízo.
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