Frederico de Carvalho Paiva *
Em artigo publicado neste site jornalístico (“Derrota da PEC 37: a apropriação corporativa das manifestações de rua no Brasil”), o eminente sub-procurador-geral da República Eugênio José Guilherme de Aragão tenta dissecar os acontecimentos recentes, expondo sua visão particular sobre a mobilização em torno da proposta de emenda constitucional que retirava os poderes investigatórios do Ministério Público.
Aduz que os debates sobre a proposta apresentada pelo deputado Lourival Mendes tão somente dissimulam uma disputa de poder entre promotores e delegados, em busca de melhores condições de remuneração e vantagens. Sustenta que a questão por trás do projeto seria definir qual das carreiras tem mais prestígio e poder, sempre com a finalidade de “expor a governança e a sociedade a riscos” e, assim, fortalecer-se para as demandas corporativas.
Em que pese os substanciosos argumentos trazidos, ouso, com a devida vênia, afirmar que o artigo comete uma série de impropriedades, fruto de uma visão “socialista” das carreiras da administração pública e da ausência do atual corregedor-geral do Ministério Público Federal no movimento que uniu todo o Ministério Público brasileiro em defesa de suas atribuições.
Leia também
“Alguns deputados comentaram sua satisfação por não receberem nenhuma demanda salarial” |
Nos últimos meses, vivenciamos um esforço enorme para convencer a sociedade e o Parlamento do desastre que seria para as instituições a aprovação da PEC 37. A proposta de alteração do texto constitucional tentou consagrar um modelo de investigação que há muito não dá certo. No mundo civilizado, a polícia é composta por um corpo técnico e eficiente, especializado na colheita de provas de ilícitos penais. No Brasil, o centro da investigação é a figura do delegado, obrigatoriamente um bacharel em direito, que preside o inquérito policial, procedimento mais atento à forma do que ao conteúdo e de resultados usualmente pífios, conforme se comprova das diversas estatísticas que tratam da baixa resolutividade das investigações policiais.
Aprovar a emenda significaria reforçar este modelo falido e conferir ao delegado, hierarquicamente vinculado ao Poder Executivo, o monopólio da investigação, consagrando o quadro de impunidade dos detentores de poder político e econômico que vigora em nosso país. Assim, por entender que a independência funcional dos membros do Ministério Público permite que realizemos investigações sobre determinados crimes que, em razão da natureza dos fatos ou dos interesses envolvidos, não seriam descortinados pelas autoridades policiais, foi que lutamos para derrubar a proposta de emenda à Constituição.
No meio do caminho, fomos surpreendidos pelas manifestações populares, que encamparam a bandeira contra a PEC 37 como uma de suas reivindicações. Obviamente ficamos satisfeitos com isso, sobretudo pelo fato de que os manifestantes conseguiram captar que defendíamos a tese de que, quanto mais legitimados para investigar, maiores as chances de debelar os alarmantes índices de criminalidade e impunidade no Brasil.
Assim, a meu ver, não é verdadeira a afirmativa de que a campanha “não traduz nenhuma preocupação com a eficiência do Estado”, pois o nosso esforço argumentativo foi justamente no sentido de demonstrar que a rejeição da proposta iria ao encontro de uma persecução penal mais eficiente e justa, principalmente em relação aos “criminosos de colarinho branco”, que tradicionalmente mantêm-se intocados pela Justiça.
Infelizmente para alguns, esta mensagem foi absorvida pelas ruas. Talvez pelo fato de que nossos ideais eram autênticos, não um pretexto para afirmar nossos egos inflados e capitalistas, como sugere o texto ora sob crítica.
Ao contrário, alguns deputados que nos receberam em seus gabinetes comentaram sua satisfação ao perceber que o motivo do encontro não era nenhuma demanda relacionada à aumento salarial, mas sim defender a possibilidade de que o MP pratique, diretamente, atos de investigação.
Repúdio e relevância
Também é digna de repúdio a afirmação de que o Ministério Público “promove por vezes seleção do caso persecutório, dando preferência ao que lhe ofereça maior exposição midiática e ao que traduza maior risco para atores da política e da economia”. Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que atuar com seletividade não significa necessariamente atuar na busca de promoção pessoal. A seletividade existe porque a investigação criminal diretamente pelo MP não deve ser a regra – as polícias têm mais recursos humanos e materiais para isso, além de ser essa a sua função primordial. As peculiaridades do caso concreto e sua relevância para o meio social é o que são levados em consideração pelo Ministério Público para exercer sua “seletividade”, até mesmo porque não é o promotor quem decide o que será publicado pela mídia.
Por último, vale rechaçar a tese de que o estabelecimento de uma paridade de ganhos entre Ministério Público, advocacia pública, Defensoria Pública e a carreira policial seria a solução para o aperfeiçoamento do Estado. Se há uma efetiva busca por melhores salários por todas as carreiras de servidores, isto não elide o fato de que algumas delas, especialmente as jurídicas, pretendem avançar nas atribuições do Ministério Público, retirando-as ou sobrepondo-as. Se existe na Constituição a exata delimitação do papel de cada uma delas, não é as igualando que irá se resolver o problema. O que irá contribuir para o avanço da democracia é o cumprimento eficiente das respectivas funções, nos limites de suas competências e responsabilidades, sem ver uma na outra o seu principal adversário.
* Frederico de Carvalho Paiva é procurador da República e Titular do 1º Ofício do Patrimônio Público da Procuradoria da República no Distrito Federal.
O artigo de Eugênio Aragão que suscitou a polêmica
Deixe um comentário