Matheus Boni Bittencourt*
A estratégia punitivista consiste na individualização das responsabilidades. Tomemos como exemplo o uso de substância psicoativas, chamadas popularmente de “drogas”. Essas substâncias se definem por alterar a consciência do consumidor, provocando sensação de prazer e em muitos casos dependência psicofísica. É inquestionável que o abuso das drogas provoca, em proporções variáveis, uma série de danos, tanto ao indivíduo quanto àqueles que o cercam.
Do uso recreativo ao abuso das drogas e dependência mórbida há uma certa distância que precisa ser percorrida. Alguns consumidores conseguem se “segurar” no uso recreativo, fazendo uso controlado para proporcionar prazer para si e alívio às agruras da vida. Outros vão além e se tornam dependentes, fazem um grande mal a si mesmos e aos outros ao seu redor.
A distância entre o uso e abuso não é apenas questão de escolha e vontade individual. Pesquisas diversas – médicas, psicológicas, sociológicas, demográficas e econômicas – demonstram como as origens, condições, valores e história de cada usuário podem determinar a transformação de um usuário recreativo em um usuário mórbido. Múltiplos fatores sociais, econômicos e culturais estão relacionados à dependência química das diversas drogas lícitas ou ilícitas. A luta contra a dependência química, portanto, exige a coordenação de múltiplas intervenções, para dar a melhor prevenção e tratamento ao problema em questão.
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A estratégia punitiva abstrai todos estes fatores sociais e se concentra em um único: a decisão individual. A escolha e vontade do indivíduo, concebido de modo abstrato, é elevada a único fator decisivo. Logo, a questão relevante passa a ser a culpa individual e a resposta única, a repressão/ punição. Trata-se de uma visão necessariamente reducionista, pois reduz uma série de problemas coletivos à culpa individual. Esta lógica pode ser observada em relação a qualquer crime: furtos, roubos, homicídios, posse de drogas, etc. Para todos, há múltiplos fatores sociais que determinam uma maior ou menor escala, gravidade e impacto da transgressão à lei. A lógica punitiva se concentra em apenas um fator, que é a escolha individual.
Sendo assim, a aposta na solução punitiva é guiada pelo reducionismo. Até aí, poderíamos pensar ainda a punição legal como uma das intervenções coletivas necessárias. Para reduzir os crimes contra a propriedade, por exemplo, seria interessante investir tanto em programas contra o desemprego e desigualdade, quanto em maior capacidade investigativa para a polícia.
PublicidadeO problema é quando a punição e polícia deixam de ser uma “intervenção” sobre os fatores para se somarem aos fatores que produzem os danos coletivos. A questão das drogas é um exemplo muito bom para se pensar o fenômeno da “solução que se torna um problema”.
A criminalização das drogas é impulsionada por uma ideologia da “sociedade abstêmia”, onde, pela primeira vez na história humana, ninguém utilizará substância psicoativas para ter a sua consciência alterada. O abstencionismo forçado seria obtido com o desaparecimento das substâncias. Sem drogas, sem “drogados”, sem efeitos perversos do abuso de drogas sobre os indivíduos e famílias.
Já mencionamos os fatores múltiplos que levam ao dano. A proibição das drogas teria como objetivo evitar o abuso de drogas de um modo muito simples: eliminando o uso. Sendo assim, os usuários, assim como os produtores e vendedores, são tratados como criminosos, esperando assim que a coerção da polícia e das prisões seja o suficiente para acabar com a demanda e com a oferta, por meio da intimidação estatal.
O que ocorre, de fato? Os consumidores não se deixam intimidar e continuarão procurando fornecedores dos produtos que querem usar – agora de modo clandestino, escondido, longe das vistas de outros, principalmente da polícia. A indústria lícita que produzia essas drogas desaparece e em seu lugar a satisfação da demanda é feita por um tipo de “capitalismo aventureiro” (expressão de Max Weber) que é legalmente definido como “tráfico de drogas ilícitas”. Os traficantes de drogas são os capitalistas aventureiros que se arriscam a serem presos para poderem lucrar com um mercado ilegal onde não precisam cumprir qualquer obrigação trabalhista, tributária ou sanitária.
Sem possibilidade de administração de conflitos através de tribunais e fiscalização, a “concorrência comercial” entre os grupos de traficantes (gangues, cartéis, “comandos”, etc), se dá pela violência armada, seguindo, aliás, a mesma lógica que o Estado promove para reprimir a circulação de drogas ilícitas. O controle repressivo sobre as drogas por parte da polícia e poder Judiciário abre possibilidades de uso da força pública para fins privados, aumentando a corrupção policial e judiciária. Para se defender de outros bandidos e da polícia, os grupos de traficantes se armam e cooptam jovens pobres para serem os seus “pistoleiros” e “soldados”. Em reação, a polícia se arma ainda mais, se tornando cada vez mais parecida com um exército de ocupação quando age nos bairros pobres. A indústria armamentista legal vende à polícia (ou militares realizando policiamento) e o tráfico de armas vende para os traficantes de drogas.
A repressão policial, no entanto, recai principalmente sobre os locais de maior concentração de pobreza – favelas ou periferias urbanas. É lá que se fazem sentir os piores efeitos da repressão penal e do tráfico de drogas: cooptação de jovens pobres por gangues de traficantes, violência armada cometida por traficantes ou policiais pelos mais diferentes motivos, etc. O maior lucro do tráfico de drogas, porém, não fica nas favelas. Os principais traficantes são ricos ou enriquecidos, não moram em favelas e dificilmente são presos ou se envolvem em tiroteios.
À medida que o tráfico de drogas se torna mais organizado e sofisticado, desenvolvem-se novas conexões. Através da lavagem de dinheiro, banqueiros e paraísos fiscais se tornam beneficiários indiretos do tráfico de drogas, da mesma forma que o caixa dois de campanhas eleitorais.
Como toda medida de endurecimento penal, a criminalização das drogas gera um impacto no processamento de crimes pelos tribunais penais. Com novos tipos penais, a polícia prenderá pessoas que de outro modo não seriam presas e disporá de maior poder e controle sobre os cidadãos. Os acusados poderão responder por mais crimes e passar maior tempo na prisão. Indivíduos reincidentes serão condenados a penas cada vez maiores. Os ricos pagarão advogados caros e competentes, coisa que os pobres não dispõem, além de não terem educação formal suficiente para terem uma melhor nação das leis em vigor.
Como consequência, as cadeias ficarão mais e mais cheias de pobres, impondo custos e humilhações aos seus familiares. A expansão do encarceramento seletivo, além da estigmatização de vários grupos sociais e da desgraça de vários indivíduos e famílias, cria demanda por expansão das vagas prisionais, cada uma das quais tem um custo muito superior ao de uma vaga numa escola e outros benefícios sociais. Se o crime pode provocar um prejuízo, a punição também tem um preço. E pode ser um negócio lucrativo para alguns, às custas da coletividade.
A criminalização de algumas drogas não contribui para resolução do problema do abuso de drogas. Pelo contrário, o soma a outro problema, que é o tráfico de drogas, o mercado ilegal explorado por capitalistas aventureiros, agrupados em gangues armadas ou cartéis.
O que se defende com a legalização das drogas é uma estratégias pragmática de redução de danos. É necessário distinguir o “uso” do “abuso” de drogas, respeitando a liberdade individual, mas também garantindo o direito à educação, informação e assistência médica, social e psicológica para os dependentes e seus familiares.
Segundo a estratégia de redução de danos, as drogas devem ser legalizadas para que seja eliminado o tráfico de drogas, o capitalismo aventureiro que tem gerado um enorme volume violência ao longo das últimas décadas. Os homicídios ou a corrupção tem outras raízes, é verdade, mas não se pode negar que o tráfico de drogas agrava a violência gerada pela desigualdade, segregação urbana, desemprego, autoritarismo policial, consumismo, etc. Com a legalização, será mais fácil regulamentar a produção, comércio e consumo dentro de padrões sanitários. Com o fim da demonização das drogas como mal absoluto, será mais fácil informar o público sobre os possíveis malefícios do uso ou abuso de drogas. Com o fim da marginalização dos consumidores, será mais fácil garantir assistência e cuidados aos dependentes químicos e seus familiares, agora não mais estigmatizados como criminosos.
*sociólogo e mestrando em ciências sociais.
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