O procurador-geral da República acaba de encaminhar ao Supremo Tribunal Federal (STF) um documento com 64 páginas denunciando o presidente Michel Temer e um de seus principais aliados, o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR), por corrupção passiva – trata-se da primeira vez que um presidente da República é denunciado no Brasil por suspeita de ter cometido crime no exercício do mandato. Loures está preso desde 3 de junho, acusado de intermediar o recebimento de propina como contrapartida do governo no sentido de beneficiar os interesses do Grupo J&F, controladora da JBS (que reúne empresas como a Friboi), junto à administração pública federal. Temer e Loures também são investigados por organização criminosa e obstrução de Justiça, acusações que também devem se transformar em denúncia ao STF nos próximos dias.
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A Presidência da República informou que não comentará a primeira denúncia apresentada por Janot, e que as manifestações do presidente nesse serão responsabilidade de sua defesa jurídica, encabeçada pelo advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira. Desde que o caso JBS ganhou o noticiário, o presidente tem optado por partir para o confronto com seus detratores e negado que tenha cometido crimes.
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Já esperada, a denúncia apresenta teor já sinalizado em relatórios que a Polícia Federal já havia entregue ao STF, apontando a prática dos três crimes – ou seja, Janot optou pelo fatiamento dos casos ao restringir ao crime de corrupção passiva a primeira leva acusatória, o que implicará na realização de três votações diferentes e sequenciais na Câmara, que deve autorizar ou rejeitar a consecução do processo (leia mais abaixo). Em seu despacho, o procurador-geral diz que o grupo de Temer deixou de lado os interesses do país para atender a “interesse escusos particulares”. Além da condenação dos investigados e da imposição de perda de mandato a Temer, o PGR pede reparação aos cofres públicos e aplicação de multa de R$ 10 milhões ao presidente e de R$ 20 milhões a Rocha Loures.
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A mais grave crise do governo Temer teve início com a revelação, pelo site do jornal O Globo, de que o presidente recebeu clandestinamente, em 7 de março, o empresário Joesley Batista, um dos donos da J&F, nos subterrâneos do Palácio do Jaburu, residência oficial da Vice-Presidência da República até hoje ocupada pelo peemedebista. Na ocasião, Joesley gravou a longa conversa com o presidente sem ele saber. Segundo perícia finalizada na última sexta-feira (23) pela Polícia Federal, Temer avaliza a compra do silêncio do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ), deputado cassado por quebra de decoro parlamentar e preso na Operação Lava Jato. Cunha foi condenado a 15 anos e quatro meses de prisão pelo juiz Sérgio Moro, na primeira das ações penais a que responde na primeira instância.
Além disso, o presidente ouve Joesley dizer que recebia, regularmente, informações privilegiadas de um procurador da Lava Jato, já preso, e de outros dois juízes com acesso às investigações. A reação do presidente diante da confissão é de naturalidade, quando a lei determina que não se omita diante da prática confessa de crimes – situação agravada pelo fato de se tratar de um presidente da República em encontro secreto sem qualquer relação com o exercício do mandato presidencial, em um palácio do governo. Em outra passagem, Temer e Loures tratam de maneiras de beneficiamento da J&F junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e até ao Ministério da Fazenda.
A empresa de Joesley é alvo de processo pendente no Cade sobre a venda de gás a preços supostamente abusivos, por parte da Petrobras, à EPE Cuiabá, termoelétrica que pertence ao conglomerado de Joesley e Wesley Batista, seu irmão. Segundo as investigações, o valor da propina repassada a Loures – “em benefício de Temer”, diz Janot –, nos termos das delações de executivos da JBS, equivale a 5% do lucro que o grupo viria a auferir com decisões favoráveis no Cade. Temer avaliza a movimentação e até indica Rocha Loures para tratar desse e de outros assuntos – como o repasse de propina que, segundo a PF, foi levado pelo ex-deputado pelas ruas de São Paulo.
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“Homem da mala”
Em uma das imagens que marcam a investigação, Rocha Loures foi filmado correndo com uma mala de R$ 500 mil – segundo o Ministério Público Federal (MPF), responsável pela ação coordenada dos flagrantes, com base em relatos de Ricardo Saud, executivo do Grupo J&F (controlador da JBS), trata-se da primeira de uma série de parcelas que, pagas por um período de de cerca de 25 anos, constituiriam uma espécie de aposentadoria para Temer e Loures. O dinheiro foi devolvido à PF pelo ex-deputado com R$ 35 mil a menos, valor posteriormente resposto pelo investigado.
“A cena do ex-deputado Rodrigo Rocha Loures correndo com um mala de R$ 500 mil pelas ruas de São Paulo é uma afronta ao cidadão e ao cargo público que ocupava”, diz o procurador-geral, para quem o dinheiro tinha Temer entre os destinatários. Na peça acusatória, Janot cita ainda o núcleo político do PMDB na Câmara, que tinha entre os próceres o próprio Eduardo Cunha.
“Os fatos devem ser analisados no contexto da organização criminosa aqui mencionada, com especial atenção para o núcleo do PMDB da Câmara. As práticas espúrias voltadas a atender interesses privados, a partir de vultosos recursos públicos, não se restringem àqueles reportados na denúncia ora ofertada. Percebe-se que a organização criminosa não apenas esteve em operação, em passado recente, como também hoje se mantém em plena atividade”, acrescenta Janot.
Janot se vale de documentos, imagens e gravações de conversas para demonstrar, com detalhes, a proximidade entre Temer e Loures e a cumplicidade de ambos nas atividades criminosas apontadas. O parecer menciona que Loures foi chefe de gabinete do preemedebista na vice-Presidência da República; em 2011. O procurador-geral cita ainda a gravação de vídeo em que Temer aparece, em 2014, pedindo votos para Loures em sua campanha por uma cadeira na Câmara. Lembra também que o ex-deputado foi designado chefe da assessoria parlamentar de Temer e, depois, chefe de gabinete da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República em 2015.
Rito
O ministro Edson Fachin, relator do caso JBS no Supremo, consulta os pares para saber se encaminha a denúncia de Janot diretamente à Câmara, onde a investigação precisa ter continuidade autorizada por dois terços dos deputados (342 dos 513 votos possíveis), ou se a envia às partes interessadas, para que se manifestem nos termos do amplo direito de defesa preconizado na Constituição. Como se trata de algo inédito no país, não está claro como será o rito da apresentação de denúncia contra o mandatário-mor do país.
O Palácio do Planalto quer rapidez na apreciação da denúncia, confiante de que tem os 172 votos para barrá-la na Câmara, como este site mostrou mais cedo. No entanto, haverá a discussão da matéria na Comissão de Constituição e Justiça, presidida pelo deputado Rodrigo Pacheco (PMDB-MG), parlamentar não alinhado a Temer e de perfil independente.
Mesmo que a denúncia seja rejeitada no colegiado, o processado segue para votação em plenário, onde cada deputado presente tem de declarar como vota ao microfone, com transmissão ao vivo e nome registrado nos canais oficiais da Casa. Com o fatiamento das denúncias e a exposição dos apoiadores de um presidente investigado, o Planalto se preocupa com uma eventual perda de adesão em sua base de sustentação, dado o constrangimento a que serão submetidos os governistas em negar ao STF a investigação do caso de corrupção envolvendo o presidente. Caso a Câmara aceite a denúncia e o STF repita tal entendimento, Temer se transforma em réu e é afastado por 180 dias até a conclusão do julgamento.
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