É válido o argumento do governo de que a Lei da Anistia é um impecilho à abertura das investigações sobre as circunstâncias da morte de Vladimir Herzog?
A ordem judicial é uma ordem para que se investigue, e não uma ordem para que se puna. O parecer que temos, elaborado por nossos advogados, é que a Lei da Anistia não se aplica a essa situação.
Como o senhor avalia a atuação do Estado brasileiro nesse caso?
O Estado descumpriu [a ordem judicial de 1978], a decisão simplesmente não foi cumprida. Na época, a gente também não se atentou a isso.
Como o senhor interpreta a conduta do governo no caso?
O governo é omisso, sim, nesse caso. Hoje existem todas as condições políticas, todo um cenário político favorável para o governo rever essa posição e fazer a reabertura do caso, obedecendo a uma ordem internacional.
Então, como lidar com essa recusa governamental?
A Comissão Nacional da Verdade vai procurar informações de coisas que ainda não são conhecidas. Existe um entendimento da Corte Interamericana [de Direitos Humanos da OEA] de que o crime que foi cometido contra o meu pai é um crime contra a humanidade – e esses crimes não prescrevem e não estão sujeitos à Lei da Anistia. Então, a corte interamericana entende que o Brasil tem de investigar. A ponto de abrir um processo judicial. Já a Comissão Nacional da Verdade não tem em seu escopo os poderes e o objetivo de abrir processos no Judiciário.
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A Secretaria de Direitos Humanos tem sido excessivamente burocrática diante da orientação de organismos internacionais?
Nosso contraponto à resposta da Secretaria de Direitos Humanos é que essa questão [restrições da legislação brasileira] não é referente à legislação do tratado internacional que o Brasil assinou junto à OEA. Vamos fazer agora esse contraponto na corte interamericana, que vai pegar essa resposta do Brasil de que foram esgotados os mecanismos jurídicos, e deve contestar. Isso não tem nada a ver com a Comissão Nacional da Verdade.
Como o senhor avalia a estrutura e o mecanismo de trabalho da Comissão da Verdade?
A Comissão da Verdade está apenas começando, foi instalada há pouco mais de 60 dias. Ela ainda está se organizando, ainda está tomando depoimentos. Eu concordo que o processo investigativo seja sigiloso. Não se pode fazer depoimentos em audiência pública, porque aí a pessoa que está falando, não vai querer falar, vai se sentir intimidada. Então, isso faz parte de uma estratégia de investigação. Existe uma regra do jogo que foi debatida extensamente com a sociedade, as coisas estão acontecendo – temos de ter paciência e ficarmos alertas. Na próxima semana deve entrar no ar o portal da comissão, onde tudo vai ser publicado. Dessa maneira vai haver transparência no processo.
Em que medida a Lei de Acesso à Informação pode ajudar no caso Herzog?
A Comissão Nacional da Verdade tem mais poder do que a própria Lei de Acesso à Informação. Independentemente da Lei de Acesso, a Comissão da Verdade tem poder de acesso a todos os documentos, inclusive os ultrassecretos. A lei de acesso pode ajudar a sociedade civil a também fazer um trabalho próprio de busca de informações, de estudos. Tentar descobrir fatos. Já a comissão tem inclusive o poder de convocar qualquer pessoa para depor, e a pessoa é obrigada a ir depor. Isso é uma coisa muito importante.
Houve algum avanço, no caso específico de seu pai, nos três anos de criação do Instituto Herzog?
A gente tem feito mais coisas do que nosso plano original de trabalho. A gente realizou inúmeros projetos, passamos os últimos 40 dias, nos meses de maio e junho, em cinco eventos falando de diferentes maneiras sobre Comissão Nacional da Verdade. A gente tem feito um resgate histórico sobre a história recente do Brasil, temos feito treinamentos. Então, eu acho que está bom para uma instituição nova. E já recebemos o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, da Presidência da República.
O senhor ainda cogita devolver o prêmio?
Não. Isso foi um mal entendido que aconteceu, em uma falha de comunicação que houve na semana da reposta brasileira à OEA.
Então, a reunião com a ministra Maria do Rosário…
Totalmente positiva. Ela estava em São Paulo, a gente já se conhecia. Então, ela veio conhecer o Instituto Vladimir Herzog, e aproveitou a data para que nós, juntos, nos entendêssemos melhor sobre a questão da resposta do Brasil à OEA.
Como o senhor avalia a postura da presidenta Dilma, uma ex-militante que já foi até torturada pela ditadura, em relação às demandas pela verdade histórica do país?
Ela está tendo uma postura única, formidável. Ela tem, realmente, sido extremamente firme e objetiva. E decidida sobre que essa história tem de ser apurada, tem de ser conhecida, mas sempre usando os instrumentos institucionais presentes no estado democrático de direito, com os quais eu concordo – temos de jogar pelas regras do jogo.
Nesse sentido, setores militares têm manifestado uma rejeição muito forte à presidenta Dilma. É um sintoma de atraso do país ainda termos núcleos que ainda defendem a ditadura?
Não sei se é atraso, falta de entendimento. Na realidade, eles têm vergonha. Tem muita gente que tem vergonha dessa história e preferia que isso estivesse enterrado. Mas isso não vai acontecer. Agora, eles, como uma instituição militar, que preza pela questão da hierarquia, de disciplina, deveriam seguir esses princípios e respeitar a chefe do Estado Maior [das Forças Armadas].
Eles recentemente fizeram uma celebração ao golpe de Estado de 64…
Eles chamam de revolução, não chamam de golpe. É uma questão de entendimento. Mas isso [as celebrações] teve uma reação forte na sociedade civil. Acho que isso é o que é mais importante – houve uma reação, houve um escracho de jovens no Rio de Janeiro, inclusive. Isso é que é importante, é uma mensagem de que a população não concorda com essa visão.
Como o senhor tem recebido a veiculação de notícias sobre o caso Herzog em tempos de transparência no Brasil? O que achou do relato do fotógrafo, na Folha de S.Paulo, que confirmou ter sido uma farsa a foto em que seu pai parece ter se suicidado?
Aquela reportagem [da Folha] é um furo, no sentido de que ninguém tinha pensado, pelo menos nas últimas décadas, em ir atrás daquele fotógrafo. Ele, como uma testemunha do ato, demonstrando que [o suicídio] foi uma farsa. Mas eu fiquei um pouco frustrado pelo fato de a reportagem não ter ido mais a fundo, não tenha ousado mais, pra saber quem eram os chefes dele, quem eram os outros fotógrafos, dando mais nome aos bois.
Mas o trabalho na imprensa, estimulado pela Lei de Acesso e pelo instituto da Comissão da Verdade, não melhora as coisas?
É um avanço, mas temos de tomar cuidado porque, muitas vezes, jornalismo se confunde com sensacionalismo. Temos de tomar cuidado com a forma com que se usam essas informações e essas fotos. Eu, particularmente, não olho essas fotos, não tenho interesse nenhum nelas. A história do meu pai, acho, é uma das histórias mais bem contadas. Falta que alguns nomes sejam colocados em algumas “plaquinhas”, de quem foram os personagens. Mas, ficar usando foto… A tese do suicídio foi derrubada há 30 anos…
O que falta, então?
Falta mudar o atestado de óbito, fundamentalmente é isso. Porque o Brasil já foi condenado pela prisão, tortura e morte de meu pai.
Qual a lembrança que você tem de seu pai?
Eu tinha nove anos. São poucas lembranças. No circo, na praça, pescando. Lembranças de astronomia, fotografia, que ele curtia muito.