Maria Elena Azevedo
Na última sexta-feira (30), o Congresso em Foco revelou que o governador do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB), e seu ex-vice-governador e atual deputado federal Lelo Coimbra (PMDB-ES) foram acusados de envolvimento com o crime organizado no estado. As denúncias, repudiadas por ambos, foram feitas em depoimentos prestados oficialmente à polícia e à Justiça capixabas (leia a reportagem completa, inclusive com reproduções dos depoimentos).
Várias personalidades passaram a manifestar em alto e bom som aquilo que já se ouvia discretamente de membros do Ministério Público, do Judiciário e da polícia do Espírito Santo: a defesa da apuração, com independência, de todas as acusações que apontam para um possível envolvimento de autoridades do estado com o crime organizado.
Um dos defensores dessa investigação é o procurador da República Ronaldo de Meira Albo, que já atuou no estado e hoje trabalha em Brasília. “O Ministério Público Federal do Espírito Santo está apático”, afirma ele, “mas em parte atribuo isso ao fato de os procuradores serem remanejados a cada dois anos. Para entender as redes do crime organizado, personagens, atividades, levam-se anos. Em 24 meses nenhum procurador tem condições de entender a complexidade e o enraizamento das organizações criminosas nas instituições, seu organograma”.
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O Movimento Nacional de Direitos Humanos decidiu apoiar a decisão da ONG Justiça Global de pedir o aprofundamento das investigações da morte do juiz Alexandre Martins de Castro Filho, assassinado há quatro anos, ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. O CDDPH é um órgão colegiado federal ao qual cabe apurar denúncias relacionadas, entre outras coisas, com assassinatos de pessoas vinculadas à defesa dos direitos humanos, massacres, extermínios e abusos policiais.
Para entender o caso
PublicidadeA matéria de sexta-feira (acesse) fez um balanço das investigações sobre a morte do juiz Alexandre. Ele foi morto quando integrava a força-tarefa federal encarregada de combater o crime organizado no estado, que é conhecido por seus elevados índices de violência. Treze dias antes da sua morte, Alexandre ouviu um preso, Thor do Império, que acusou o irmão de Lelo, o ex-vereador de Vitória José Coimbra (PSDB), e o próprio deputado de participação no homicídio de José Carlos Preciosa, ocorrido em 1993.
Thor afirma que matou Preciosa para evitar que ele entregasse a um delegado de polícia provas sobre possíveis laços entre o à época vereador, o atual deputado federal e o então prefeito de Vitória, Paulo Hartung, e irregularidades em contratos públicos municipais. Fala que cometeu o assassinato a mando de José Coimbra e que foi orientado por Lelo a oferecer outra justificativa para o homicídio. E acrescentou ter visto Hartung na sede da Scuderie Le Cocq. A entidade foi fechada pela Justiça após longa história, na qual deixou fartas provas de conexão com a ação de grupos de extermínio e de quadrilhas criminosas.
Hartung, embora questionado inclusive por escrito sobre as denúncias feitas contra ele, evitou entrar no mérito das denúncias de que é alvo. Por meio de sua assessoria, limitou-se a afirmar: “A polícia investigou todo o caso e identificou os executores e mandantes do crime. Os executores estão presos e os mandantes estão em processo de julgamento, portanto, não há qualquer dúvida em relação a esse homicídio”.
Com a declaração, ele responde de forma indireta à outra acusação, feita pela personal trainer do juiz Alexandre, Júlia Eugênia Fontoura. Ela disse à polícia, em depoimento tomado com a presença de representante do Ministério Público Estadual, que o juiz temia ser morto pelo governador.
Lelo desmentiu categoricamente todas as acusações, atribuindo-as a armadilhas de adversários políticos. Admitiu que seu irmão pertenceu à Le Cocq, mas que ele não pode ser responsabilizado pelos atos de José Coimbra. E reconheceu que Thor do Império esteve junto dele e do irmão em campanhas eleitorais.
A organização não-governamental Justiça Global, especializada em direitos humanos e que já levou o tema da morte do juiz Alexandre à Organização das Nações Unidas (ONU), denunciando-o como atentado aos direitos humanos no Brasil, não está satisfeita com as investigações. Por isso, decidiu recorrer ao CDDPH para “cobrar o aprofundamento do caso”.
O crime do juiz
Quem defende as investigações não endossa, necessariamente, as suspeitas – suscitadas em tese pelo depoimento da personal trainer – quanto ao envolvimento de Hartung na morte do juiz Alexandre. Cobra, sim, a apuração de fatos que poderiam levar a novas informações sobre a ação do crime organizado no Espírito Santo. Além do cumprimento, pelas autoridades constituídas, de sua obrigação de esclarecer denúncias de crimes, até mesmo, se for o caso, para comprovar que são falsas.
O juiz Carlos Eduardo Lemos, que integrou a missão federal no estado junto com Alexandre, afirma que a morte do colega está esclarecida, apontando para a responsabilidade de outro juiz, Antonio Leopoldo; do coronel da PM Walter Gomes Ferreira; e do ex-policial civil Cláudio Luiz Andrade Baptista, o Calu; e para a identificação dos sete responsáveis pela execução. Todos os sete foram julgados e condenados. Embora pronunciados, nenhum dos três acusados pelo mando foi ainda a júri.
“Acho absurdo que os principais acusados do crime estejam soltos e não tenham sido julgados”, afirma Ronaldo Albo. Ele critica o sistema jurídico, que permite à defesa dos acusados protelar indefinidamente o júri por meio de recursos e hábeas corpus, em tramitação, sobretudo, nos tribunais superiores, em Brasília.
Ronaldo Albo atribui a essa possibilidade de infinitos hábeas corpus nas instâncias superiores a imagem negativa que a sociedade tem do Estado: “Em 100 anos o Supremo Tribunal Federal não condenou uma autoridade sequer porque, com freqüência, os processos prescrevem. A defesa se aproveita dessa lacuna para entrar com diversos recursos e levar casos à prescrição, por exemplo. Quem pode alegar que não teve direito de ampla defesa após ser indiciado pelo delegado, pronunciado pelo Ministério Público e condenado por um juiz? Ora, não é possível que no decorrer do processo não houvesse como o acusado apresentar sua versão para os fatos. O resultado disso é desastroso, porque passa para a população a impressão de impunidade”.
O procurador diz que, apesar de não estar acompanhando o caso Alexandre Martins, não acredita que o governador esteja implicado na morte do juiz. “Isso não pode significar que os depoimentos de Thor e da personal trainer não devam ser investigados”.
O depoimento de Thor
Ronaldo Albo confirmou a versão de Carlos Eduardo de que, em 2003, quando Hartung já era governador, uma fita com o depoimento de Thor foi entregue ao então chefe da missão especial no Espírito Santo, o subprocurador da República José Roberto Santoro. “Dias antes de ser assassinado, Alexandre me disse ter entregue o depoimento ao Santoro, requisitando que as denúncias de Thor do Império fossem investigadas e que o procurador se comprometeu a entrar com o caso no Superior Tribunal de Justiça, o que nunca foi feito por ele”, disse Albo.
Santoro está licenciado da Procuradoria Geral da República, e mantém atualmente escritório de advocacia. Em busca de um contato, a reportagem procurou o subprocurador por telefone e e-mail. Sua secretária confirmou o recebimento da mensagem, mas falou que ele se encontrava em viagem e não poderia ser ouvido antes de quarta-feira.
O procurador da República Ronaldo Albo atuou diretamente contra o crime organizado no Espírito Santo, onde permaneceu por sete anos. É dele a ação impetrada para extinguir a Scuderie Detetive Le Cocq, tendo o Movimento Nacional de Direitos Humanos como assistente de acusação.
A extinção da entidade, considerada paramilitar e ligada ao crime organizado no estado, foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo) em dezembro de 2004. “Depois do assassinato de Alexandre, não tive mais condições de trabalhar no estado”, afirma Ronaldo Albo.
Marta Falchetto, representante do Movimento Nacional de Direitos Humanos no Espírito Santo, destaca a necessidade de uma “investigação séria”: “Procuradores como Ronaldo Albo, Alexandre Spinoza foram para Brasília, o Ministério Público Estadual desmontou o Grupo de Repressão ao Crime Organizado (GRCO)… isso é típico no estado: ninguém que começa uma investigação vai até o final. O caso do Alexandre teve três inquéritos e três delegados com informações diferentes. O que significa isso para o sistema de segurança estadual? Eles vão apurar ou vão fazer de conta que não existe os fatos relatados na reportagem, como o depoimento do Thor do Império e da personal trainner?”.
Ela complementa: “Nós, lutadores da vida e dos direitos humanos queremos uma investigação séria e que o Ministério Público faça o que for possível para elucidar todos os aspectos levantados em torno do assassinato. Existem muitos fatos a serem esclarecidos. Se na morte de um juiz as apurações são desse jeito, imagine com pessoas comuns o que não ocorre”, lamenta Marta Falchetto.
O ex-governador Max Mauro (PDT), citado pelo deputado federal Lelo Coimbra como possível autor das armadilhas feitas para incriminá-lo, foi ouvido no sábado (31.03) pela repórter. Em maio de 2003, dois meses após a morte do juiz Alexandre, Thor do Império acusou Max de ter lhe dado dinheiro para denunciar Lelo e o irmão.
Eis as declarações do ex-governador: “Soube da audiência de Thor e tentei conseguir a fita, sem sucesso. No primeiro depoimento, ele procurou os juízes (Carlos Eduardo Ribeiro Lemos e Alexandre Martins Filho) por que pararam de pagar a ‘pensão’ para ele. No segundo, no qual ele me incrimina, foi pago para dizer isso. Tanto é que no terceiro depoimento [dado em 2005, em que ele confirma a versão dada aos juízes e diz que recebeu dinheiro de José Coimbra para acusar Max Mauro] ele volta atrás. O curioso é que Thor é de Vitória, mas dizia que a família era de Linhares e, por isso, queria ficar lá. Foi em Linhares, onde ele tinha liberdade para sair da cadeia à hora que quisesse, que armaram esse depoimento em que ele me acusa. Curiosamente, tempos depois eu estava visitando o projeto de informática para pessoas carentes, mantido por um deputado e qual a minha surpresa quando vejo o Thor lá, livre e solto”.
Ele lamenta que a conclusão do inquérito tenha desconsideradas as declarações de Thor do Império e Julia Eugênia Fontoura: “Eu, quando fui governador, criei a polícia de carreira, com autonomia. É com tristeza que vejo ingerências políticas na ação policial, na medida em que, passados quatro anos da morte, continuam sendo desprezados depoimentos. O Alexandre era um rapaz brilhante, destemido e tinha um belo futuro pela frente. Espero que esses fatos denunciados sejam todos apurados, que o caso ande”.
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