Henrique Ziller*
Capítulo 2
Pecador arrependido
Se Peralta tinha sido uma frustração, ainda que produzisse algum sucesso de mídia, a CPI do Tráfico de Cebolas conseguira um grande trunfo: Laureano.
Laureano era um pecador arrependido. Participante ativo, ao longo de muitos anos, das atividades do tráfico, agora se encontrava na condição de principal informante da CPI. Desde o primeiro momento, sua participação se revelara de grande utilidade, pois as informações que trazia não só eram verdadeiras como diziam respeito a altos níveis na hierarquia do tráfico.
Laureano acusara John Cougar, com quem trabalhara por muitos anos, de comandar uma parte importante do tráfico, a partir da fachada de seus negócios legais. A partir das denúncias feitas por Laureano, a maior parte dos parlamentares já se convencera de que ali estava um homem importante na estrutura do crime organizado.
A informação mais impressionante dava conta de uma reunião que Laureano teria presenciado. Segundo o relato, teriam participado dela os deputados federais Gustavo Frei e Antero Pinto, o deputado estadual Leilson Juliano e John Cougar. Segundo contou, Laureano não estava na mesma sala em que estavam os deputados, mas em outro aposento, próximo ao grupo o suficiente para ouvir parte do que eles falavam. Isso tudo nunca foi provado acima de dúvidas. Se tivesse de fato acontecido, estaria sendo descoberto um elo de grande importância no crime organizado.
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Cougar fora convidado para depor, e o plenário da CPI estava repleto. Podia-se notar, inclusive, a presença de alguns parlamentares não muito atuantes na comissão – alguns deles suplentes, mas que aos poucos começavam a se unir ao grupo de frente. A exposição na mídia obviamente os atraía. O clima entre os membros da CPI era bom. Por mais que se tenham levantado desconfianças acerca deles, de fato o partidarismo político era pouco perceptível e fora algumas disputas em função das agendas políticas pessoais de alguns parlamentares, prevalecia um ambiente de harmonia.
Havia, ao fundo do plenário no qual seria realizada a reunião da CPI, um corrimão que fazia barreira entre os assentos para parlamentares e os outros assentos, área na qual se postavam as câmeras de televisão. Atrás do corrimão havia duas fileiras de assentos, que abrigavam cinegrafistas, auxiliares, assessores e interessados em geral. As duas últimas fileiras de cadeiras, antes do corrimão, na ausência de parlamentares para preenchê-las, poderiam ser ocupadas por outras pessoas. Ali se amontoavam jornalistas, assessores e outros interessados, em proporções descomunais. Transitar por ali era quase impossível, especialmente atrás do corrimão, em função dos tripés das câmeras, dos fios, dos spots de luz, enfim, de toda a parafernália de equipamentos das televisões.
O depoimento deveria começar por volta das 15 horas, e Cougar apresentara-se na hora marcada, discretamente vestido, com terno azul escuro e blusa branca, sem gravata. Não só sua aparência simples e despojada, mas principalmente a tranquilidade e a simplicidade demonstradas em seu depoimento, confundiram a muitos dos presentes na sala.
O decorrer do interrogatório parecia demonstrar que ele era a pessoa errada. Tudo indicava que Laureano havia apontado um colega que, ainda que fosse criminoso, não tinha cacife para ser considerado o sucessor de algumas das atividades ilícitas do grande capo dos tempos de um ex-presidente, conforme fora ventilado em algumas situações. Apesar da grande vontade de se provar isso, não era possível que aquele campineiro simples tivesse algum dia tido acesso a Pedro Conde Frei – aquele que já tinha sido uma notável eminência parda na República – como Laureano afirmava.
Lúcia Xavier, a jornalista mais conhecida e influente entre todos os que acompanhavam a CPI, em meio ao burburinho do fundo da sala, brincou dizendo que a Audi que, durante a sessão, Cougar admitira possuir, tinha sido comprada de Cairo Fontes. Àquela altura, Cairo tinha se lançado – talvez precocemente – à sucessão do presidente da República, Leonardo Pedrosa. Por isso, tinha se tornado um bom alvo para a mídia. Sua Audi fora, pouco dias antes, motivo de denúncia de enriquecimento ilícito.
Fora a Audi, Cougar afirmou possuir apenas uma casa não muito grande, e sua empresa, Dog Master, que distribuía produtos para cachorros.
Cougar saiu-se muito bem. Conseguiu escapar de todas as armadilhas preparadas pelos parlamentares. Durante uma pausa, entre outras que foram feitas na sessão que duraria 5 horas, Armando José e o relator Clésio Filho aproximaram-se dele propondo um acordo:
– Olha aqui, Cougar, tu podes até conseguir se sair bem deste depoimento, mas com o tanto de material que já ajuntamos, o Ministério Público te pega logo. Tu podias pensar em fazer um acordo, e nós te damos a mesma proteção que estamos dando ao Laureano.
Cougar só respondeu:
– Os senhores estão enganados, não é a mim que devem fazer essa proposta. Eu sou inocente nessa história toda.
A tensão cresceu no Plenário no momento da acareação entre Cougar e Laureano, que acabou não sendo muito produtiva. Aliás, o mesmo aconteceu em muitas outras sessões da comissão. Cougar não se abalou, embora Laureano fosse aos poucos confirmando todas as denúncias anteriores. Na verdade, Cougar enfrentou todas as acusações simplesmente negando que os fatos tivessem ocorrido, mantendo-se calmo o tempo todo. Não teve maiores problemas para se desvencilhar das armadilhas que enfrentou.Em certo momento, perguntou a Laureano:
– Mas, afinal, porque você está fazendo isto? Que mal eu te fiz?
Laureano foi pego de surpresa com o contra-ataque e se embaraçou para responder. Não conseguiu dar uma dar resposta apropriada. Talvez tenha sentido um pouco o fato de que, segundo ele próprio admitia, Cougar havia sido sempre muito correto no relacionamento entre os dois. Para Cougar, tratava-se apenas de uma relação funcional normal, na empresa Dog Master. Cougar parecia estar, de fato, profundamente decepcionado com Laureano. A atitude de Laureano parecia ser como que a quebra de um código de ética próprio entre ele ou interno da organização da qual ambos pareciam fazer parte.
Nesse dia, o advogado de Cougar, Lúcio Sales, que seria preso posteriormente em Campina Grande, quando a CPI passou por lá, foi, pela primeira vez, apresentado ao público. Sentado no plenário, foi acusado por Laureano de tê-lo tirado da cadeia com suborno, pois teria sido detido fazendo uma operação para Cougar.
– Estou falando daquele homem de bigodinho que está sentado ali atrás…
Lúcio Sales logo seria, também, investigado.
Aquela acareação entre Cougar e Laureano repetia um aspecto muito interessante da CPI, e não só daquela, mas que ocorria também em outras. Os parlamentares costumavam pecar neste ponto: estabeleciam categorias nas quais encaixavam os vários personagens que surgiam em suas investigações. Laureano, o bandido arrependido, tornara-se herói, inatacável. Não que não tivesse seus méritos. De fato, o tráfico sofria algum abalo com o surgimento de pessoas como ele, dispostas a dar informações internas. Mas à medida que os depoimentos se desenrolavam, os parlamentares muitas vezes extrapolavam na disposição em defender suas testemunhas, como se seus depoimentos não merecessem reparos, ganhando o status de verdade absoluta.
Pode-se dizer que havia algo como um processo de canonização das testemunhas, cujos depoimentos eram defendidos e preservados, às vezes a qualquer preço, ainda que exibisse contradições. Em contrapartida, havia o processo de demonização ou condenação infligido àqueles a quem a CPI julgava culpados de antemão.
Esse tipo de comportamento chegou ao absurdo diante de uma contradição claríssima no depoimento de uma testemunha, que ocorreria mais tarde em Salvador.
A CPI do Tráfico de Cebolas arrastou para o Coliseu alguns inocentes que, muito provavelmente, saíram de lá com marcas e mágoas profundas.
Por outro lado, Laureano, o criminoso arrependido, já era até capaz de fazer graça em seus depoimentos, dando a impressão de estar se sentindo bem com a repercussão de sua atuação na CPI. No entanto, é de se questionar de ele deveria ter sido guindado ao posto de herói. Sua vida não deveria servir de exemplo a ser seguido por nenhuma pessoa de bem na sociedade, fora sua capacidade de dar meia volta e denunciar o tráfico de cebolas.
Assim foi que, ao longo da CPI, algumas pessoas foram canonizadas, e outras previamente condenadas e demonizadas pela CPI, com repercussão na mídia, como foi o caso de Almeida. Laureano fazia parte do time dos canonizados e, agora, restara a Cougar enfrentá-lo, numa acareação entre o bandido arrependido que se tornara santo e aquele que era seu principal acusado.
O depoimento de Cougar foi longo. Alguns parlamentares tinham certeza absoluta de que ele era um nome grande do crime organizado no país, principalmente porque confiavam quase cegamente em Laureano. Mas não havia nada que pudesse ser feito àquela altura, pois as provas, ainda que suficientes, ainda não tinham sido organizadas em processo pelo Ministério Público, de maneira a denunciá-lo perante a Justiça. A CPI bem que tentou pedir o indiciamento e a prisão preventiva dele, mas, depois de algumas medidas tomadas pela CPI que haviam sido contestadas no Supremo Tribunal Federal, a comissão sentia que precisava de se preparar melhor para evitar procedimentos sem fundamentação suficiente que pudessem vir a ser revistos pelo Suprema Corte, gerando descrédito para a CPI.
Dias depois Cougar fugiu do país, confirmando as suspeitas que pesavam contra ele. Muitos que assistiram ao depoimento, no entanto, até o momento da fuga achavam que ele não poderia ser, em absoluto, um nome de porte e que merecesse investigação mais aprofundada.
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* Auditor concursado do Tribunal de Contas da União (TCU), presidiu a União dos Auditores Federais de Controle Externo (Auditar), mantém o blog http://www.ziller.com.br/blog/ e preside o Instituto de Fiscalização e Controle (IFC).
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