Celso Lungaretti *
O que há, ainda, para se dizer sobre o infausto cinquentenário do golpe de 1964? Tantos e tantos já escreveram, alguns com conhecimento de causa, muitos com conhecimento livresco e um contingente maior ainda baseando-se nos panfletos pró e contra que infestam a internet…
Aos intelectualmente honestos e medianamente perspicazes não escapa a obviedade de que a conspiração direitista vinha de longe e quase emplacara quando da destrambelhada renúncia de Jânio Quadros. O dispositivo golpista, contudo, ainda não estava pronto e a tentativa de aproveitamento de uma oportunidade de ocasião se revelou precipitada.
As principais mudanças ocorridas entre agosto de 1961 e o Dia da Grande Mentira em 1964 foram:
– depois que o caipirão Lyndon Johnson herdou a presidência dos EUA, os pratos feitos da CIA voltaram a ser engolidos na Casa Branca (dificilmente John Kennedy deixaria suas digitais impressas numa virada de mesa no Brasil, assim como evitou oficializar o envolvimento estadunidense na invasão da Baía dos Porcos, negando apoio aéreo aos mercenários recrutados pelos gusanos de Miami);
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– após a firmeza do governador gaúcho Leonel Brizola e dos cabos e sargentos das Forças Armadas terem garantido sua posse, o bobalhão João Goulart tudo fez para apaziguar os inimigos. Chegou ao cúmulo de permitir que os oficiais reacionários desencadeassem um verdadeiro expurgo na caserna, transferindo os líderes dos subalternos para bem longe das respectivas bases (suas associações continuaram ruidosas, como convinha aos planos dos golpistas – está aí o cabo Anselmo que não me deixa mentir! – mas não poderosas, pois eram muitos caciques para poucos índios);
Publicidade– a participação civil, inexistente em 1961, foi buscada mediante propaganda enganosa maciça e parcerias com a direita católica, não porque tivesse verdadeira importância no script golpista, mas como azeitona na empada, a fim de tornar a quartelada mais palatável no Brasil e, principalmente, no exterior;
– o governo João Goulart vagava à deriva, ora inclinando-se à esquerda, ora contemporizando com a direita, o que fez os dois campos o encararem com suspeitas e não priorizarem a defesa do mandato legítimo;
– o hegemônico Partido Comunista Brasileiro se embananava todo ao acreditar que militares legalistas defenderiam Goulart e, como consequência, semeava a confusão entre a esquerda (esta ficou sabendo tarde demais que não contaria com apoio fardado nenhum contra os golpistas, só dependendo da resistência que ela própria conseguisse estruturar).
Mesmo com todos os ases e curingas nas mãos, os líderes golpistas hesitavam. Aí o impasse foi quebrado por um ferrabrás que tinha papel secundário na conspiração: o general Olímpio Mourão Filho.
Tratava-se de um fascistão com carteirinha assinada. Fora um dos líderes da Ação Integralista Brasileira e redator do famoso Plano Cohen, falso rol de intenções da Internacional Comunista que os galinhas verdes colocaram em circulação como espantalho para assustar milicos.
Ele botou o bloco na rua, precipitando os acontecimentos: sem aval do Estado Maior golpista, marchou com suas tropas de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro. Foi duramente criticado pelo governador Magalhães Pinto (MG), para quem sua bravata poderia ter causado um banho de sangue.
Mas, por que a tão trombeteada ameaça comunista na verdade inexistia, a marcha pela Via Dutra acabou sendo um passeio. Bastariam dois ou três caças da FAB para a abortarem, pois os inexperientes recrutas debandariam em pânico logo à primeira rajada.
A traquinagem do histérico Mourão Filho não o beneficiou: o poder acabou ficando com os conspiradores históricos, articulados em torno de Castello Branco.
Pode-se dizer que João Goulart foi derrubado pelo piparote (peteleco) de um mad dog (do inglês, cachorro doido) fardado.
* Jornalista, escritor e ex-preso político, mantém o blog Náufrago da Utopia.
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