Antonio Marcelo Jackson *
Em matéria publicada na última terça-feira (20) pelo jornal O Globo, repercutida pelo Congresso em Foco no dia seguinte, Geddel Vieira Lima, ministro-chefe da Secretaria de Governo e responsável pela articulação política da atual Presidência da República, afirma que o assim chamado “caixa 2” não é crime e sua argumentação se dá em virtude de um projeto enviado pelo Ministério Público Federal à Câmara dos Deputados solicitando a criminalização de tal prática. De acordo com o senhor ministro, “se pede isso, é lícito supor que caixa dois não é crime”.
A fala de Geddel Vieira traz à baila a interessante concepção de não apenas parte da classe política, mas também de um enorme contingente da sociedade brasileira, para se definir o que é e o que não é lícito. Noves fora qualquer malícia nas palavras do pecuarista e administrador de empresas baiano, o que está em jogo é saber se no conjunto de regras de convívio social e naquelas expressas em lei é necessário que se tenha a definição de uma punição para se saber que algo é impróprio ou ilegal.
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Tomemos um exemplo simples. De acordo com a “lógica” expressa acima, pode-se pressupor que, numa Constituição – ou Código de Leis Complementar –, se existir a expressão de que “a vida deve ser preservada”, mas esta não estiver acompanhada de outra afirmação, tal como, “nesse sentido, o assassinato de alguém é definido como crime”, isso indicará que a morte não natural de qualquer pessoa promovida pela violência de outra jamais deverá ser interpretada como algo ilícito ou por completo ilegal.
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O primeiro aspecto nos remete inevitavelmente ao entendimento mais superficial da entrevista do ministro-chefe da Secretaria de Governo, a saber que “se não está na Lei, então é permitido”. Os juristas mais atentos lembrarão das distinções entre os sistemas de “Common Law” e “Civil Law”.
Dito de forma bem simples, há no primeiro caso o entendimento de que a normatização e consolidação da jurisprudência contribui para uma maior segurança jurídica, visto que casos semelhantes seriam julgados a partir de decisões tomadas pelos tribunais em épocas anteriores, sem a necessidade de estarem expressos em uma legislação. Países com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos são ótimos exemplos desse sistema.
Já no segundo caso, o sistema de Civil Law, ao contrário do primeiro, indica que todas as decisões jurídicas devem estar redigidas na lei e, nesse sentido, a jurisprudência quando há deve ser interpretada como referência, e não como determinante nas decisões de um tribunal. França, Portugal e, notadamente, o Brasil vinculam-se a essa corrente.
Se isso é verdadeiro, então a primeira conclusão que se pode tirar a partir da fala de Geddel Vieira Lima é que a leitura que faz a respeito do “caixa dois” vincula-se muito mais a uma tradição jurídica do que, necessariamente, a um fundamento ético. Alguns chamarão minha atenção para os escritos de Nicolau Maquiavel apresentados há mais de quinhentos anos, quando afirma e demonstra que a política é desprovida de qualquer princípio moral e que, portanto, a fala do político baiano se justifica no cotidiano desse “ofício” ao lançar mão de uma das características de um país de Civil Law.
Contudo, não custa também lembrar que os escritos do pensador florentino dizem respeito àquele que ambiciona o poder ou que deseja manter-se no poder. Em outras palavras, para aceitarmos maquiavelicamente os termos do ministro-chefe da Secretaria de Governo, não podemos vê-lo como membro do Estado Brasileiro, mas sim como um ator da política que ambiciona manter a si e a seus pares no poder.
Ainda em perspectiva, a fala de Vieira Lima pode também ser analisada pelos escritos de Thomas Hobbes, em sua clássica obra Leviatã. De acordo com Hobbes, “os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar segurança a ninguém”. Isso porque os seres humanos apenas respeitam uma regra na medida em que a mesma promova alguma espécie de temor (uma punição, portanto). Quando isso não ocorre, a assim denominada “natureza humana” o remete a espoliação, furto ou qualquer forma de violência que lhe permita conquistar aquilo que se deseja.
Por esse ângulo, o entendimento de Geddel Vieira em relação à classe política – a que ele, inclusive, pertence – se insere naquilo que denominamos “estado de natureza hobbesiano”, ou seja, nossos prestigiados senadores, deputados federais, deputados estaduais, vereadores, presidentes da República, governadores e prefeitos somente agem de maneira ética e sem subterfúgios na relação direta de uma lei que determine uma clara punição para um ato ilícito. Como o próprio nome diz, “caixa dois” já se define como algo ilegal; porém, na lógica hobbesiana do ministro não há ilegalidade porque não há “pacto com uma espada”. Um caso a se pensar.
O que podemos concluir a partir de tudo o quer foi dito acima? Se levarmos em consideração as pesquisas de popularidade sobre a classe política, em todos os lugares do mundo, sugere-se antes de tudo que o senhor ministro repense sua opinião, visto que ela estaria presa à ideia de que a classe política está descolada da sociedade e não lhe deve qualquer explicação.
Porém, talvez a conclusão mais incômoda seja aquela que remete a fala do ministro ao universo hobbesiano. Se ele, como ministro-chefe, deveria se portar como parte efetiva do Estado brasileiro e, portanto, zelar pela paz social e a manutenção de relações éticas em todos os segmentos sociais, ao afirmar que não vê nada de ilegal no “caixa 2” ele rompe com esse fundamento e se posiciona ao lado de todos os demais que buscam tão somente a conquista do poder. Sendo isso verdadeiro, como classificar e o que esperar do Estado no Brasil atual?
*Doutor em Ciência Política; professor do Departamento de Educação e Tecnologias da Universidade Federal de Ouro Preto.
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