Lúcio Lambranho
Quando a Polícia Federal divulgou que tinha apreendido em um hotel paulistano R$ 1,7 milhão que seria usado para comprar o dossiê Vedoin, políticos da oposição estranharam o fato de a operação não ter sido acompanhada pela imprensa. Por isso, não há imagens do dinheiro encontrado, o que contribuiu para levar esses políticos a levantar a suspeita de que a PF estaria protegendo os petistas envolvidos na desastrada aquisição do tal dossiê.
Não veio à tona até o momento nenhum elemento capaz de comprovar as suspeitas da oposição. Que, por sinal, demonstrou até agora não ter papas na língua para sugerir o envolvimento do presidente Lula no episódio, mas nenhuma disposição de tratar da possibilidade de o Ministério da Saúde ter sido usado durante a gestão de Fernando Henrique como fornecedor de vultosos recursos para a máfia dos sanguessugas (embora sejam fortes os indícios nessa direção).
Mas é certo que, no passado recente, uma informação incorreta em relatório da Polícia Federal acabou por preservar o ex-ministro da Fazenda Antônio Pallocci das investigações da CPI dos Bingos do Senado, que foi criada em 2005 e funcionou até este ano.
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No documento, encaminhado à comissão do Senado, há várias referências ao celular (61) 8111-7197. O celular recebeu 32 ligações de Rogério Buratti e duas de Waldomiro Diniz. O primeiro foi acusado de envolvimento na máfia do lixo de Ribeirão Preto, município administrado por Palocci até 2002, e na polêmica negociação da renovação do contrato entre a Caixa Econômica Federal e a Gtech, multinacional de processamento de loterias.
Waldomiro, também envolvido no caso Gtech, foi afastado da subchefia de Assuntos Parlamentares da Casa Civil após a divulgação de vídeo em que aparecia cobrando propinas do empresário de jogos Carlos Cachoeira.
Segundo a PF informou à CPI no relatório, o celular pertenceria à funcionária pública Núbia Patrícia Aquino Alves. Na verdade, porém, ele era da Secretaria de Administração da Presidência da República e permaneceu entre fins de 2002 e 2004 sob a responsabilidade do mais próximo auxiliar de Palloci à época, seu assessor particular Ademirson Ariovaldo da Silva.
Técnicos da comissão se convenceram de que o próprio ex-ministro também utilizava o telefone, o que o advogado de Palocci contesta.
Núbia: "Nunca usei esse telefone"
O relatório da PF, ao qual o Congresso em Foco teve acesso na íntegra, é identificado como "IPL nº. 04.312/04-SR/DPF/DF – Processo nº 2004.34.00.1.2065-0/10ª Vara – (doc. sigiloso) Volume-VI". Trata-se de uma cópia do original, encadernado e sem numeração, com um total de 75 páginas. O documento, inteiramente rubricado, mostra listas de milhares de telefonemas e vários cruzamentos de ligações telefônicas em gráficos conhecidos como "aranhas". Neles, é possível visualizar quem ligou para quem, e quantas vezes, durante o período em que os telefones foram grampeados com autorização judicial.
Esse foi o primeiro documento recebido pela CPI dos Bingos que tratava da quebra de sigilos telefônicos. Assinado pelo agente federal Syd Jorge de Souza Guimarães, ele trata de duas investigações diferentes: o caso Gtech e as irregularidades na contratação do serviço de lixo de Ribeirão.
Além de Buratti, o número 8111-7197 foi veículo de contatos telefônicos com outro integrante da chamada república de Ribeirão Preto, Vladimir Poleto (aquele dos dólares de Cuba). As chamadas aconteceram em dias-chave para a assinatura de contrato com a multinacional de processamento de loterias e a Caixa.
Segundo os gráficos incluídos no relatório, o celular recebeu 19 ligações do número (16) 8111-0135, então usado por Buratti, para o qual foram retornadas outras dez chamadas. As demais ligações partiram do telefone fixo de Buratti, (51) 4247-0008. O celular da dupla Palocci/Ademirson recebeu duas ligações do número (61) 9961-4694, pertencente a Waldomiro Diniz.
Núbia Patrícia, 38 anos, há 15 funcionária do Ministério da Saúde, soube da vinculação do seu nome no relatório da Polícia Federal pelo Congresso em Foco. Assustada, reagiu com as seguintes palavras: "Misericórdia. Deus que me livre. Essa é mais um cilada do cão para cima de mim, mas eu não tenho nada a ver com isso. Isso tudo só pode ser um mal-entendido. Eu nunca usei esse telefone".
Atualmente secretária do ministro da Saúde, Agenor Álvares, Núbia falou por telefone com o repórter, com quem combinou de se encontrar pessoalmente. Minutos depois da conversa telefônica, a reportagem recebeu um telefonema da assessoria de comunicação do Ministério da Saúde.
A assessora queria saber o assunto tratado com a funcionária e informar que Núbia Patrícia não falaria com nenhum jornalista. Mesmo com a mudança repentina, tentamos entrar em contato novamente com a funcionária, inclusive por meio do seu celular, cujo número foi informado à reportagem na entrevista por telefone. Núbia não atendeu mais aos telefonemas.
Entenda a investigação
A quebra de sigilo foi autorizada pela Justiça de Ribeirão Preto, onde o Ministério Público Estadual (MPE) investigava a chamada máfia do lixo. Essa investigação gerou na última semana um pedido de prisão preventiva contra o ex-ministro da Fazenda, Antônio Palocci.
O documento da PF obtido pelo Congresso em Foco se divide em duas partes. A primeira, denominada "relatório de análise nº 1", concluiu que existiam fraudes em licitações em prefeituras da região e que a principal beneficiada seria a empreiteira Leão Leão, acusada por Buratti, que foi vice-presidente da empresa, de pagar uma mesada de R$ 50 mil por mês ao ex-ministro da Fazenda, atual candidato a deputado federal em São Paulo pelo PT. Em troca, Palocci manteria os contratos da Leão Leão com a Prefeitura de Ribeirão Preto, durante suas duas gestões no executivo municipal, na área de tratamento e coleta de lixo.
Nessa parte do relatório, foram examinados 1.680 arquivos de áudio no formato mp3. Todos eles foram gerados a partir de interceptações telefônicas dos seguintes personagens: Rogério Buratti, entre os dias 03/05/2004 e 15/09/2004, e Marcelo Franzini e Wilney Barquete no período de 23/04/2004 e 16/09/2004.
Syd Guimarães, o agente federal que assina o documento, informa que os três personagens investigados não tiveram contato nesse período com os negociadores da Gtech, multinacional de loterias que renovou sem licitação um contrato de R$ 650 milhões do processamento de loterias com a Caixa Econômica Federal em abril de 2003.
Já o "relatório de análise nº 2", também assinado pelo mesmo agente, exatamente aquele em que o nome de Núbia é citado, trata dos mandados judiciais que quebraram o sigilo telefônico, no período de dezembro de 2002 a janeiro de 2004, de sete pessoas: Waldomiro Diniz, Carlos Augusto de Almeida Ramos (o Carlinhos Cachoeira), novamente Rogério Buratti, Enrico Gianelli (advogado da Gtech), os executivos da multinacional Marcelo Rovai e Antonio Carlos Lino da Rocha (negociadores do contrato) e o jornalista Mino Pedrosa, ex-assessor de imprensa de Cachoeira.
O cruzamento das ligações ocorreu antes da divulgação do primeiro escândalo do governo Lula, o caso Waldomiro. Somente no dia 16 de fevereiro de 2004, um mês após o envio do relatório 2 para o delegado responsável, a revista Época revelou que Waldomiro Diniz pedira propina – para ele mesmo e para campanhas eleitorais do PT – numa fita de vídeo gravada por Cachoeira ainda em 2002.
O nome de Núbia Patrícia Aquino Alves aparece pela primeira vez no anexo II do segundo relatório de análise, entre os telefones contatados pelos investigados. Numa planilha de cinco colunas, o nome da funcionária do Ministério da Saúde aparece duas vezes, incluindo seu atual endereço e CPF. Os dados conferem, segundo a funcionária pública.
Na primeira linha, ela está relacionada com o número usado pelo ex-ministro Antônio Palocci e Ademirson Ariovaldo da Silva. O telefone é o (61) 8111-7197. Na segunda linha, o número relacionado com ela é o (61) 9760-323.
No rastro do celular
Segundo Núbia Patrícia, esse último número realmente lhe pertenceu e na época era administrado pela Telebrasília. Por isso, segundo ela, o telefone tinha um número a menos dos que os celulares de hoje da capital federal. A Telebrasília foi privatizada em 29 de julho de 1998 e hoje pertence ao grupo Brasil Telecom.
Mas o número usado pelo ex-ministro e atribuído à funcionária pública é da TIM. O Congresso em Foco procurou a operadora, mas a assessoria de imprensa disse que não poderia fornecer dados a respeito porque a lei a obriga a manter sigilo sobre o assunto.
Aos técnicos da CPI dos Bingos, no entanto, a TIM informou que o número 8111-7197 estava em nome da Presidência da República e sob o uso de Pallocci e de Ademirson, ao contrário do que indicava o relatório da PF.
O senador Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), ex-relator da CPI, confirma a informação. Segundo ele, "os dados que as operadoras telefônicas mandaram para a CPI dos Bingos não deixaram nenhuma dúvida de que o telefone 8111-7197 estava em nome da Secretaria de Administração da Presidência da República desde final de 2002, época em que Ademirson trabalhava na transição do governo FHC para o governo Lula" (leia a entrevista de Garibaldi).
Foi a partir dessa revelação que se apertou o cerco contra o ex-ministro, que só parou com o caso da quebra de sigilo do caseiro Francenildo Costa em abril deste ano e seu posterior afastamento do cargo.
Antes mesmo da chegada dos dados corretos repassados pela operadora, a CPI já desconfiava das informações fornecidas pela PF. No dia 11 de agosto de 2005, portanto, mais de um mês depois de receber o documento da Polícia Federal, integrantes da comissão requisitaram a relação completa das ligações obtidas a partir da quebra do sigilo telefônico de Buratti por ordem judicial.
Técnicos da CPI estranharam o fato de não constar da lista da PF, feita entre dezembro de 2002 e janeiro de 2004, uma ligação de dez minutos que partiu de um telefone fixo de Buratti para o gabinete do ministro Palocci.
Os parlamentares naquela época já tinham a informação de que telefonemas como esse entre Buratti e o chefe de gabinete de Palocci, Juscelino Antonio Dourado, eram freqüentes desde o início do governo Lula.
As ligações eram feitas para o celular de Dourado e também para vários ramais do gabinete ministerial, onde ficavam os principais assessores de Palocci. "Se a PF não se manifestar até hoje, a CPI vai convocar para dar as explicações o agente Syd Jorge de Souza Guimarães, responsável pelo relatório dos telefonemas", dizia reportagem do jornal Correio Braziliense de 19 de agosto de 2005.
Por esse motivo, somente sete meses depois de a CPI receber o relatório da PF, o mesmo Correio Braziliense estampou o número de Palloci na capa da sua edição de domingo, naquele dia 19. O que o jornal não sabia, e era desconhecido até agora, é que o número 8111-7197 havia sido vinculado a Núbia.
Desdobramentos
No Senado, o relatório final da CPI dos Bingos aprovado pelos senadores indiciou mais de 30 envolvidos. Entres eles, Ademirson Ariovaldo da Silva, que foi acusado de formação de quadrilha, corrupção passiva, crime contra o procedimento licitatório e improbidade administrativa. Palocci não foi indiciado.
Lendo um trecho do relatório da CPI é possível observar a importância das ligações telefônicas de Ademirson que acabaram incriminando o ex-assessor de Palocci, mas ficaram escondidas sob o nome da funcionária do Ministério da Saúde:
"No dia 1º de abril, Rogério Buratti tem duas reuniões com dirigentes da Gtech sobre o valor da propina. Não chegam a um acordo. Após a reunião, os dirigentes da Gtech se dirigem à CEF para assinar o contrato. Antes de chegar naquela estatal, Buratti liga para Marcelo Rovai informando que o contrato não seria assinado naquela data, o que de fato ocorreu. Paulo Bretas informa para a Gtech que havia uma pendência e que Gianelli saberia qual era. Rovai afirma que Gianelli lhe disse que a pendência seria a não contratação de Rogério Buratti. Nesse dia, há um intenso contato telefônico entre Rogério Buratti, Ralf Barquete e Ademirson Ariovaldo Silva, numa clara triangulação".
Ralf Barquete, que faleceu em 2004, era ex-secretário de Fazenda de Palocci na Prefeitura de Ribeirão Preto e na época assessor especial da presidência da Caixa, cargo ocupado por indicação do ex-ministro. Paulo Bretas era na época vice-presidente de Logística da Caixa e, junto com o ex-presidente do banco Jorge Mattoso, teve seu indiciamento requerido pela comissão pelos crimes contra o procedimento licitatório, prevaricação e improbidade administrativa.
O caso Gtech continua longe do final. Ainda é investigado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal, que aguardam novos documentos sobre o assunto em absoluto silêncio, mesmo após a divulgação final do relatório da CPI dos Bingos.
Desde o início de janeiro de 2005, o delegado César Nunes, que recebeu o "relatório de análise nº 2", passou o comando das investigações para o delegado Nilton Souza Siqueira, que está lotado na Superintendência do Espírito Santo. Em relatório entregue ao Ministério da Justiça, a PF – mostraram os jornais no dia 11 de fevereiro de 2005 – admitiu que houve "desgaste" entre o delegado e dois procuradores da República durante a investigação do esquema de cobrança de propinas envolvendo Waldomiro Diniz e o caso Gtech.
O relatório da PF relatava uma "divergência" de opinião entre o delegado César Nunes e os procuradores Marcelo Serra Azul e José Robalinho, "causando, assim, desgaste no relacionamento entra tais autoridades". Por isso, diz o documento, "a direção geral da PF decidiu designar outro delegado para o caso".
Segundo o relatório, o procurador Robalinho considerou "superficial" o relatório feito por César Nunes e requisitou novas diligências à Polícia Federal, destinadas a elucidar o caso Waldomiro.
O advogado de Palocci, José Antonio Batochio, afirmou ao Congresso em Foco que o ex-ministro da Fazenda "desconhece esse número de telefone e jamais o usou".
Também procuramos a assessoria de comunicação da PF, que classificou o assunto como "velho e superado", mas ficou de obter informações sobre o caso, ainda na última quinta-feira, dia 21. Apesar de novas tentativas de contato, a assessoria não atendeu à reportagem nem deu retorno até o fechamento desta edição.
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